A desconstrução dos padrões morais de Michel, "O Imoralista"

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O protagonista Michel (des)constrói sua própria (i)moralidade em sua sua vida

Andre Gidé
Andre Gidé

É consensual que a maior parte das pessoas passa pela vida sem refletir sobre a sua condição existencial, aceitando passivamente as imposições do meio, as quais levam-nas a adotar acriticamente formas de viver que repetem gerações anteriores e as restrições que cabiam a elas. Superar o viés tradicional, contudo, exige superar barreiras que podem parecer, à primeira vista, intransponíveis. Trilhamos esse caminho, à margem de paisagens idílicas, através de O Imoralista, do francês André Gide, Nobel de Literatura de 1947.
Gide, homossexual assumido, constrói um personagem controverso e contido que se abre aos próprios instintos a partir de dois momentos-chave: o primeiro foi a tuberculose, atacando-o após sucessivos resfriados tratados de maneira negligente e que o força a empreender viagens por climas mais amenos para abrandar a doença. O segundo, um encontro com um amigo cujas reflexões, de tão semelhantes às do protagonista, servem mais ou menos como uma validação das concepções que germinam neste.
Michel, o personagem principal, é um jovem parisiense que acabara de casar, menos por amor e desejo do que por imposição do pai moribundo. Herda deste, sozinho, uma vasta herança, a qual gastará sem muito comedimento. Aos 25 anos, considera limitado seu conhecimento sobre a vida, restrita basicamente aos livros e, até o momento das primeiras viagens para tratar da saúde, não pensa na vida de forma mais ousada.
imoralistacapahlÉ na pequena comuna de Biskra, na Argélia, que ele passa a ter contato com meninos mais novos e passa a desconsiderar a companhia e os cuidados de Marceline, sua esposa. Aí, até a viagem para a Itália, ele passa o dia brincando com os garotos, ensinando e aprendendo com eles novas diversões e revelando claros traços de pederastia. Retornando a Paris, o casal passa por Túnis, Malta, Siracusa, Ravello, Amalfi e Sorrento, cidades que atiçam o imaginário e contribuem para a cura de Michel. Recuperando-se em meio à paisagem costeira, ele elogia o ambiente natural e revela que “tudo me enchia do adorável encanto de viver e me bastava, como uma leve alegria que habitasse dentro de mim; lembranças ou saudades, esperança ou desejo, futuro e passado se calavam; eu só conhecia da vida o que levava em mim, o que trazia em si o instante”.
Uma carta esperada de Paris complementa a felicidade da recuperação: uma vaga para lecionar no Colégio de França. No retorno ao país, passam por La Morinière, terras que foram do pai de Michel e que agora exigem a atenção dele. Nesta região, onde Marceline descobre estar grávida, o protagonista dedica vasta atenção e admiração física ao filho do caseiro, Charles.
Em Paris, no retorno, o desconforto de Michel com relação às visitas é nítido. Declarando seu pouco brilho como conversador, critica fortemente a frivolidade das reuniões e lamenta seu estado inexpressivo, enfadonho e triste após o importuno dos encontros. “Todos eles se parecem. Cada um repete os outros. Quando converso com um, tenho a impressão de conversar com muitos”, revela, lamentando o vazio e o desperdício de tempo desses instantes.
É com um amigo que reencontra em Paris, Menálque, que ele, então, consegue se identificar com alguém do ponto de vista espiritual e intelectual. Este lhe antecipa os pensamentos, declarando que na sua vida só busca o natural, nada mais que isso, e é no prazer que encontra nessa forma de viver que reside a prova de que deve praticá-la. O amigo, contudo, não aplica nenhuma receita sobre a vida, assim como acredita que ninguém deve invejar a felicidade alheia: “Das mil formas da vida, cada um de nós só pode conhecer uma (…). A felicidade não se compra feita, quer-se sob medida. (…) cortei minha felicidade à minha medida (…)”.
Durante as férias do Colégio de França, o casal retorna a La Morinière após um ano da última visita. Michel ignora Charles e busca satisfazer a curiosidade dos seus instintos através da família Heurtevents, cujas histórias ardentes e picantes atraem o protagonista como uma mosca para o pote de doce. Cada vez mais distante de Marceline, ele declara que a felicidade que ela lhe dava era tal como um repouso para quem não se sente cansado. Cada vez mais distantes um do outro, e com Marceline, que nunca antes estivera doente e que perdera prematuramente o bebê, fragilizada pela tuberculose, eles partem para a Suíça em uma viagem derradeira da paixão frágil e impossível.
O Imoralista é abundante em imagens e emoções. Michel, por sua vez, é um personagem universal. Comovido pela morte e pela observação mordaz do mundo, constrói sua própria moralidade, blindada, na medida do possível, dos olhares vigilantes e acusatórios do público, o qual se move à volta atento aos gestos alheios, pronto para cercear todo e qualquer gesto que contrarie as suas (rasas) expectativas sobre a vida.

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