Somos o que lemos. Toda literatura que consumimos tem impacto sobre o que escrevemos. Para alguns de nós, o ato de ler é sua principal fonte de inspiração. Eu sou um desses. Livros enchem minha cabeça com ideias. Eles me fazem andar pela casa, olhos perdidos: de repente, preciso fazer com que minha imaginação aconteça. Posso tomar meus livros como tão responsáveis pelo que escrevo quanto eu. Somos coautores. E livros são poderosas alianças para se ter.
Quando, porém, acostumados ao conforto dessas parcerias deixamos que elas tomem o controle, é fácil esquecer o essencial. Uma das regras menos contestadas do fazer arte é que ser fiel a si é usar a própria voz. E se realmente ouvimos um autor por centenas de páginas, respirando seu mundo, não é tão difícil que comecemos a acreditar que o universo opera através daquelas regras e a pensar como pensam nossos ídolos.
Pensar como pensa outra pessoa, no entanto, é o primeiro passo para que nos afastemos de nós mesmos. Na literatura, nossa voz é a única coisa que nossos leitores são capacitados para receber, por isso devemos cuidar dela com cuidado. Soar como o Escritor A é, no fim, falar apenas sobre o que interessou ao Escritor A, e só se preocupar com as questões que tiram (ou tiraram) seu sono. Sua fala perde poder quando sai de uma boca diferente da sua (porque ela não está armada com o conjunto correto de dentes para defendê-la).
Pois bem. Vamos supor que nós, sim, escrevemos; e ainda que ultimamente sentimos os sintomas da contaminação por uma voz que não é a nossa (digamos que seja o Escritor A).
Tentemos então o seguinte: vamos deixar que uma overdose nos cure.
Vamos pegar os livros de seus autores favoritos da prateleira. Montemos um coquetel de desintoxicação. Derramemos sobre a escrivaninha. É muito importante que nossa equipe seja selvagem: precisamos de poesia livre, contos curtos sobre certa falta de sentido na vida, épicos em sete volumes de mitologia germânica, trabalhos acadêmicos sobre as raízes da função zeta de Riemann, experimentos em escrita automática do início do século XX. Vamos misturá-los. Gostamos de todos, sim: mas para que nosso exercício dê certo, precisamos reunir um grupo difícil. Eles precisam se desentender. Escolhamos obras que não conheçam língua em comum.
Agora selecionemos nossas passagens favoritas deles; vamos lê-las como loucos. Leiamos duas vezes. Analisemos. Dissequemos. Debrucemos sobre as ambiguidades que têm. Prestemos atenção aos comprimentos das frases e seus pesos (brutos e líquidos). Procuremos a origem etimológica das palavras que só fingimos que sabemos o significado. Pensemos em transcrever a poesia em prosa, e também o contrário. Brinquemos com esses trechos. Tentemos encontrar o verdadeiro nome de Deus na primeira letra de cada capítulo.
Precisamos ter essas passagens em nós como temos glândulas. E quando estivermos assim: aí escrevemos.
O que estamos tentando? Um método para estar sob tantas influências que nenhuma delas se sobressai. Vamos cozinhar com tantos temperos que nenhum dos sabores vai dominar o nosso prato. Nossos leitores podem mesmo ser capazes de dizer que determinada frase é típica do Escritor A; mas em outra figura de linguagem encontram o Escritor B ou C. Quando nós os colocamos juntos, não soam como um acorde dissonante. Soamos como uma nova voz. O todo é mais que a soma de suas partes.
Assim funciona a física do som. Cada som é feito de uma soma de diferentes ondas. Pode-se simular perfeitamente o som de uma corda de violino reproduzindo artificialmente cada uma dessas frequências. Rádios funcionam graças a esse princípio. Nós precisamos tratar cada uma de nossas influências como apenas uma onda. Não podemos ser apenas uma, ou deixar que uma dessas frequências nos domine: precisamos de muitas delas. Desta forma, criamos música que é nova.
O homem constrói-se sobre padrões. Nossa fala, por exemplo, é feita de padrões, que usamos para expressar quem somos. Aprendemos a nos comunicar com nossos pais no reconhecer desses padrões e em tentar imitá-los. Esta capacidade mímica está em nosso sangue e, de certa forma, é responsável pela nossa cultura e como ela se desenvolve.
Alguns acreditam que se devam jogar fora as influências: enfurna-se profundamente em uma caverna, lendo nada, tremendo enquanto as vozes alheias exsudam do corpo. Gosto de acreditar em algo diferente. Acredito que não podemos nunca evitar as influências a nossa volta. Acho até que as línguas e suas estruturas exercem um desejo sobre nós, por pensarmos através delas e também por participarmos de sua evolução. Não consigo nos imaginar verdadeiramente fora: somos como fibra de um só músculo. Somos como células do organismo de nosso idioma.
Deixemos, portanto, entrarem os autores que amamos. Deixemos que retornem enquanto escrevemos. Estabeleçamos com eles um armistício: mas façamos que lutem por essa paz. Talvez até tiremos algum proveito desse exercício em diplomacia: pois penso ser difícil que se ponham objetos tão distintos olhando uns para os outros sem que se aprenda algo sobre eles.