Desvios precisos: sobre A viagem de James Amaro, de Luiz Biajoni

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Em uma narrativa bem arquitetada, Biajoni explora a essência complexa do homem através de personagens enganosamente simples – enquanto um jazz toca ao fundo

Luiz Biajoni
Luiz Biajoni

A rota de A viagem de James Amaro (2015), de Luiz Biajoni,  nunca é uma linha reta; bem como ocorre na vida, cada curva é imprevisível. A sinopse oficial deste livro nos informa sobre o reencontro, após muitos anos sem contato, de dois grandes amigos de infância e adolescência, que então resolvem fazer uma viagem de carro a Paraty. Tudo isto sugere ao leitor uma narrativa leve, de enredo repleto das aventuras que se pode imaginar que dois homens, sós e soltos numa cidade turística, viveriam. Mas isto seria uma linha reta.

Tanto a viagem de James Amaro quanto a escrita de Luiz Biajoni são repletas de curvas e desvios, fazendo parecer que não chegarão a lugar algum a cada novo instante – o que as leva a situações bem mais interessantes do que a nossa expectativa inicial poderia supor. Uma das riquezas do romance é justamente o fato de quase tudo nele poder ser colocado em perspectiva: tanto personagens quanto enredo, e mesmo o próprio narrador, são fatores apresentados de modo sensivelmente relativo pelo autor.

Os protagonistas James Amaro e Alex Viana são seres absolutamente opostos. Nem mesmo por isso são, redutivamente, representações estereotipadas – não são opostos polares, e sim harmônicos, complementares. Astuciosamente, Biajoni faz parecer, a princípio, que o são; as desconstruções gradativas das aparências e dos estereótipos superficiais são o ponto alto desta narrativa.

James Amaro é descendente de família rica; é homem mulherengo, infiel, misógino… É alto, tem porte de atleta e um jeito despojado e desbocado – vale dizer que costuma se referir a mulheres como “bocetas”. Tornou-se advogado bem-sucedido, mantendo o padrão socioeconômico herdado de sua família. A sequência inicial do livro, que ludicamente apresenta James como numa cena de filme hollywoodiano, pode remeter ao homem maduro que, transbordando charme com seu ar de Casanova, passeia pela orla num dia de sol admirando a beleza das moças jovens na “Balada das meninas de bicicleta”, do igualmente incorrigível Vinicius de Moraes.

Já Alex Viana, rapaz franzino, sensível e de hábitos discretos, é um intelectual, fez cursos de cinema em Londres, onde morou por alguns anos. À época de colégio, era excelente aluno e não raro ajudava James com as lições – ou as fazia por ele. No entanto, acabou envolto em graves dificuldades financeiras, com vários aluguéis atrasados e dificuldades para se sustentar apenas com suas aulas de língua inglesa.

Considerando estes fatores, impressiona que, dentre eles, o sofisticado conhecedor de jazz norte-americano seja James Amaro, enquanto Alex Viana é o fã de música pop. Impressiona levando-se em conta seus perfis particulares, a despeito da origem sociocultural de cada um. Desse modo, Biajoni conduz o leitor a uma contínua e incessante revisão de seus conceitos sobre a sociedade e os indivíduos.

Também a relação entre os protagonistas é muito mais complexa – e verossímil – do que se costuma retratar na ficção, de modo geral. Os dois nunca foram propriamente amigos, mas devido à sensibilidade e à inteligência características de Alex, James às vezes o via como única opção para conversar e pedir ajuda em determinados assuntos. Em contrapartida, protegia o frágil colega sempre que necessário. Esta parceria, um tanto inconstante, relativamente distante e, em certa medida, baseada numa troca de interesses, acabaria por não resistir ao fim do período escolar – e é retomada quando James Amaro se vê outra vez necessitado de um bom ouvinte e Alex Viana, de proteção (financeira, agora). Surpreendentemente, esta não é a história da retomada de uma velha amizade, mas da complexa construção de uma nova entre velhos conhecidos.

Como é comum entre as narrativas de viagem verdadeiramente boas, o que mais interessa nesta é o percurso, e não o ponto de chegada. Dado o longo distanciamento que se abre como um abismo entre os personagens, todo o trajeto do luxuoso carro branco de James é para eles a oportunidade – e, para o autor, o perspicaz pretexto – de um profundo diálogo de re-conhecimento. A situação inusitada gera inúmeros momentos de hilário desconforto para um ou de íntima confidência para outro – isso quando o leitor não vivencia estas duas sensações de cada protagonista a um só tempo.

A orquestração de intimidades e estranhamentos só funciona porque Biajoni foi capaz de arquitetar uma estrutura narrativa muito bem consolidada tanto para seu romance como um todo quanto para a dinâmica das cenas entre os dois companheiros. Os títulos dos capítulos – 1. Eu e Ele; 2. Início; 3. James Amaro; 4. Meio; 5. Alex Viana; 6. Fim; 7. Ele e Eu – já insinuam o equilíbrio sóbrio das partes que compõem o livro – fator que se opõe à ebriedade que agrega a dupla James e Alex, reaproximados depois de anos devido a uma garrafa de Glenlivet, um dos melhores uísques produzidos na Inglaterra, segundo Alex.

Nos referidos capítulos, um narrador em terceira pessoa e o próprio Alex Viana se alternam na apresentação do enredo e dos pensamentos dos personagens. Assim, em termos psicológicos, o foco do romance incide principalmente em Alex e suas impressões. Já quanto às experiências de vida, de início sabemos muito pouco sobre ele. Enquanto Alex frequentemente faz as vezes de narrador do romance, dentro da história é James quem dá as cartas. Durante a viagem, a divisão de atitudes é clara e rígida por um bom tempo: James narra, externalizando sua história, e Alex a internaliza, sentindo-a, comentando-a para si, refletindo sobre ela – e constrangidamente evitando possíveis indiscrições para não ser desagradável ao novo velho amigo. Lemos, concomitantemente, a viagem de James Amaro e as vertigens de Alex Viana. Esta configuração narrativa e a própria relação entre os dois homens e até nos traz à lembrança Jay Gatsby e Nick Carraway, de O Grande Gatsby, do americano F. Scott Fitzgerald, outro entusiasta do jazz.

Como Biajoni parece adepto dos caminhos tortuosos e não das linhas retas, mesmo este esquema de convívio aparentemente rígido estabelecido entre James e Alex se altera a certa altura, o que pode, num primeiro momento, parecer contraditório em relação ao perfil dos personagens, mas o autor o faz de modo muito sensível e natural. Esta é a maior evidência de que James Amaro e Alex Viana não são realmente personagens, e sim pessoas, de tão reais que são; como pessoas reais, são contraditórios e imprevisíveis – e ainda assim, “fiéis a si mesmos”, que é o único tipo de fidelidade em que James diz acreditar. Toda a casca de força e superioridade em James e a de fragilidade e razão em Alex aos poucos se abre para revelar camadas internas inimagináveis na psicologia de ambos, e tudo isso em um romance não muito extenso, que consegue ser leve e tenso, divertido e denso.

A viagem de James Amaro
A viagem de James Amaro (Língua Geral, 2015)

O jazz, que perpassa todo o livro, pois toca no carro de James Amaro ao longo da viagem, é sempre referido com paixão e precisão, através dos títulos dos álbuns com seus respectivos artistas, às vezes destacando uma ou outra canção específica. A idolatria de James pelo estilo musical domina a narrativa e a torna um delicioso aperitivo tanto para quem já possui uma relação íntima com nomes como John Coltrane, Ron Carter, Bill Evans, McCoy Tyner, Chet Baker, Dave Brubeck, Sun Ra, Herbie Hancock ou Billie Holiday quanto para quem os deseja conhecer. É um convite subliminar do autor a ler seu romance acompanhado pela devida trilha sonora.

Por experiência própria, diria a qualquer futuro leitor de A viagem de James Amaro: aceite a sugestão. Aceite e concilie dois prazeres, que se mostrarão tão complementares quanto as complexas figuras de James Amaro e Alex Viana, e tão harmônicos quanto os músicos do lendário quinteto de Miles Davis – o qual você estará prestes a conhecer sob uma perspectiva única: a literária.

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