Diana Wynne Jones, mestra (esquecida) da Fantasia

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Precursora da nova leva de autores de fantasia infanto-juvenis, Diana Wynne foi pioneira do gênero século passado, além de aluna de Tolkien e C. S. Lewis. 

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Foi no meio da febre Harry Potter, lá pelos meus treze anos, que conheci Diana Wynne Jones. Era o auge do renascimento de fantasia entre crianças e adolescentes, graças a J. K. Rowling, e eu queria mais: queria devorar tudo aquilo que parecesse remotamente mágico e que caísse em minhas mãos. Diana Wynne Jones caiu em minhas mãos por meio da indicação de uma amiga. Seu primeiro livro que li, Vida Encantada, parte da série Crônicas de Crestomanci, fez com que eu me apaixonasse imediatamente; nem sei precisar quantas vezes o reli, mas posso dizer que as páginas ficaram todas precocemente amareladas, de tanto que foram reviradas.

O que diferia Jones de Rowling era o modo mais cru com que a primeira tratava magia, apesar de haver antecipado muitas das coisas que fariam da série da segunda um fenômeno literário. O mundo de Jones já era povoado com pobres órfãos com poderes mágicos, com pequenas bruxas psicopatas, com dragões que nem sempre eram muito úteis, com magos que não hesitavam em manipular crianças para atingir seus fins (bons ou não), com bruxas sendo perseguidas e o conflito entre aqueles que eram feiticeiros e os que não tinham poder algum; havia magia e cenas engraçadas, mas também havia um leve cinismo permeando as páginas, um tipo de escuridão subjetiva que não se encontra hoje em dia com tanta frequência nas leituras que se dizem infanto-juvenis, algo que eu não sabia nomear direito quando criança, mas que me fascinava do mesmo modo.

A Semana dos Bruxos

Em A Semana dos Bruxos somos apresentados a uma escola para crianças bruxas: mas é um lugar radicalmente diferente de Hogwarts, tétrico e detestado pela maioria de seus estudantes, onde não se aprende magia, mas aprende-se a escondê-la; ou os inquisidores o buscarão e desgraças acontecerão:
“Assim Charles seguia, trotando e pensando. Entregou-se inteiro ao sentimento de ódio ao Internato de Larwood; ele detestava a quadra sob seus pés, as trêmulas árvores de outono que pingavam água nele, as traves brancas dos gols e a fileira de pinheiros na frente do muro gradeado que mantinha todos do lado de dentro. Então, quando virava a esquina e avistava os prédios da escola, odiava-os ainda mais. Eram feitos de uma espécie de tijolo arroxeado. Charles achava que aquela era a cor que ficaria o rosto de uma pessoa sendo estrangulada. Pensou nos compridos corredores lá dentro, pintados de verde-taturana, os pesado aquecedores que nunca estavam quentes, as salas de aula marrons, os gelados dormitórios brancos e o cheiro da comida da escola, e quase atingiu um êxtase de ódio. Então olhou para o grupo de pernas que percorriam na sua frente o perímetro da quadra e sentiu por todas as pessoas da escola o ódio mais horrível de todos.

Diante disso, ele descobriu-se pensando no bruxo sendo queimado na fogueira. Aquele pensamento invadiu sua cabeça sem permissão, como sempre fazia. Só que dessa vez parecia pior do que de costume. Charles constatou que estava recordando coisas que não havia percebido na ocasião: o formato exato das labaredas, saltando de pequenas para grandes, e o modo como o bruxo gordo inclinava-se para um lado, fugindo delas. Ele via a face exata do homem, o nariz embolotado com uma verruga, o suor sobre o nariz e as chamas refletindo-se nos olhos e no suor do homem. Acima de tudo, conseguia ver a expressão do bruxo. Era de total espanto. Até aquele momento em que Charles o viu, o homem gordo não havia acreditado que ia morrer. Certamente havia pensado que sua bruxaria poderia salvá-lo e agora dava-se conta de que não podia. E estava apavorado. Charles também estava apavorado. Ele continuou correndo, em uma espécie de transe de horror.”*

Diana Wynne Jones não media palavras; não acreditava que escrever para jovens significava açucarar suas histórias e poupá-los de cenas fortes, e talvez por isso (também por isso, porque há muitas outras qualidades) permaneça um nome respeitado pelos autores atuais de fantasia.

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A autora, Diana Wynne Jones

Nascida em 1934, na Inglaterra, Jones foi evacuada para o interior  no auge da Segunda Guerra, como as crianças dos livros de Nárnia. Sua experiência em Gales não foi tão mágica, porém, embora acabasse por inspirar algumas de suas histórias futuras. Quando crescida, frequentou a St. Anne’s College, em Oxford, onde chegou a ter aulas com o próprio C.S. Lewis e também com outro nome que viria a compor o cânone fantástico britânico: Tolkien. De seus professores, diferiu-se muito. Atéia desde sempre, Jones colocava o destino de seus personagens em suas próprias mãos, profecias ou não, e mesmo deuses estavam lá para ser desafiados.

Com uma notável percepção feminista, eram em muitas ocasiões suas personagens femininas que iam ao resgate dos outros, como no livro Fire and Hemlock, uma versão da lenda de Tam Lin; ou como faz Nan, em A Semana dos Bruxos; ou como Sophie, que salva mais de um mundo em O Castelo Animado. E ainda que eu tenha mencionado apenas Rowling, ela não foi a única pessoa que Jones antecipou: já em 1975 escrevia Eight Days of Luke, que serviria de inspiração para Deuses Americanos anos depois. O próprio Neil Gaiman, um de seus grandes amigos (e fã), disse a respeito de Jones:

“Ela era um pouco mágica, sim, e comandando um caldeirão a revirar com histórias e ideias, mas ela sempre deu a impressão de que as histórias, aquelas que ela escreveu e que escreveu tão bem e sabiamente, haviam simplesmente acontecido, e que tudo que ela precisou fazer foi apenas segurar a caneta.”

Diana Wynne Jones faleceu em 2011, devido a um câncer no pulmão. De seus mais de 40 livros, apenas um punhado deles foi publicado no Brasil: os quatro a compor o corpo principal da série Crestomanci (com o adendo de um livro de contos) e O Castelo Animado, que serviu de base para o filme de 2006 de Myiazaki e suas continuações. É pouco. Diante da grandeza da obra de Jones, queria eu que as crianças daqui pudessem ter acesso a ela por completo, que suas histórias povoasse a cabeça delas tanto quanto povoam a minha. Reservo-me a honra de apresentá-la às novas gerações; na esperança de despertar nelas a mesma magia que despertou em mim.

* Tradução de Eliana Sabino, para a Geração Editorial.

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