Diário da Queda, romance de Michel Laub, circula entre as camadas que (des)constroem uma personalidade, a partir de análises fragmentadas de memórias e o sentimento que restou
Diário da queda é uma viagem circular ao passado do narrador, de seu pai e de seu avô. Uma arqueologia escrita, na qual o protagonista busca os motivos de ser um homem de meia-idade instável e com dificuldade de estabelecer relacionamentos amorosos sadios.
Escrito em primeira pessoa, o livro constrói pacientemente a biografia de três personagens: o narrador, seu pai, obrigado a crescer e assumir os negócios da família muito cedo, e seu avô, um sobrevivente de Auschwitz.
O momento crucial da adolescência do protagonista, cujo nome não é revelado, ocorre no aniversário de um colega de escola. João é um bolsista, órfão de mãe, pobre e retraído, que sofre perseguição diária (também) por ser gói em um colégio onde a maior parte dos alunos é judia. Não contentes, os colegas, incluindo o protagonista, combinam uma “brincadeira” durante a festa que o pai de João se esforçou para pagar: jogam-no para cima treze vezes, como em um Bar Mitzvá, mas o deixam cair na última. João quase fica paralítico. Depois de meses recuperando-se, volta às aulas com restrição de movimentos. O sofrimento e a vergonha transformam o narrador, que se torna o melhor amigo da vítima e acaba culpando os ensinamentos do pai por sua falha.
A narrativa é construída em pequenos tópicos e grandes frases (algumas de fazer inveja a Saramago). O que poderia ser uma escrita cansativa, tanto pela formulação quanto pela temática densa e introspectiva, revela-se uma leitura envolvente. Há um contrabalanço desses elementos com a forma de divisão do texto, em pequenos tópicos, e com o talento de Michel Laub.
O escritor esboça, já de início, todo o desenho da história. Depois, revela gradativamente novos detalhes e acrescenta camadas, como um esmerado confeiteiro literário. Os mesmos elementos e situações retornam ao texto várias vezes, cada uma delas com mais cores e significados, como se estivéssemos rodando e nos aprofundando no passado do protagonista.
O mais rico dos três personagens é o avô, que, nos últimos anos de sua vida, dedicou-se a escrever um “tratado” sobre todas as coisas. Todas as coisas, menos aquelas que mais importavam, entre elas as lembranças do seu tempo como prisioneiro.
[…] Dá para acompanhar a sequência como uma história, mas, porque os verbetes são evidentemente mentirosos, num tom grosseiramente otimista, isso é feito de maneira inversa: meu avô escreve que não há notícia de doenças causadas pela ingestão de leite, que o porto é o local onde se reúne o comércio ambulante que trabalha sob regras escritas de controle fiscal e higiene, e não é difícil imaginá-lo no cais, depois de ter comido os últimos pedaços do pão endurecido que foi o seu único alimento durante a viagem, tomando o seu primeiro copo de leite em anos […] e em poucas semanas ele quase morreria disso. (Página 25)
Embora o avô se recuse a mencionar em sua enciclopédia o período em Auschwitz, as memórias do cárcere manterão a sua alma prisioneira até o final da vida, quando deixa a esposa e o filho. A trajetória trágica do avô ditará, em grande medida, a de seus sucessores.
Não seria justo com o leitor antecipar outros elementos da história e retirar-lhe o prazer de descobrir, conduzido pela narrativa reflexiva de Michel Laub, a história da família do protagonista e a razão pela qual resolveu a registrar.
Diário da queda contém ricas referências aos efeitos e sequelas cotidianas e atuais do Holocausto. Há, ainda, uma interessante abordagem da obra do italiano Primo Levi, que construiu um impactante e detalhado quadro de como era a vida dos prisioneiros em um campo de concentração. Mas o livro vai além. Aborda os dois lados do preconceito religioso, tanto o praticado pelos judeus quanto pelos católicos, e demonstra como ele tem raiz na imbecilidade e dá como fruto a violência. Lida de forma crua e direta com o relacionamento entre pais e filhos e passa – o mais importante – veracidade em seu relato.
Michel Laub é gaúcho, de Porto Alegre. Nasceu em 1973 e tem uma sólida carreira como escritor. Publicou, até o momento, sete romances e ganhou ou foi finalista dos principais prêmios da literatura brasileira, tais como o Jabuti (2007 e 2017), a Copa de Literatura Brasileira (2013), a Bienal de Brasília (2012) e o Érico Veríssimo (2001). Foi editor-chefe da revista Bravo e é colunista de grandes jornais.