“O livro é classificado como um romance policial, mas não espere um detetive com um cachimbo na boca, tirando conclusões mirabolantes. Porém, seguindo a tradição do gênero, o talento de Raphael Montes está em prender o leitor desde a primeira página, seduzindo-o sempre com a pergunta: o que acontecerá com Téo daqui para frente?”.
A citação de Nietzsche no começo – “Há sempre uma loucura no amor. Mas também há sempre alguma razão na loucura” – serviria como justificativa para a escrita de um personagem psicopata, tremendamente lógico?
Dias Perfeitos, de Raphael Montes, publicado pela Companhia das Letras, conta a história de um amor impossível, obsessivo, mas não clichê. Téo é um estudante de medicina, uma pessoa metódica que divide seu tempo entre os livros e a convivência com a mãe, Patrícia, paraplégica. Além disso, sua única amiga é Gertrudes, o cadáver que disseca nas aulas (relação notável ao aparecer na cena de abertura do romance). Num dia como qualquer outro, Patrícia o obriga a acompanhá-la num churrasco de amigos, embora seja vegetariano. Téo concorda, após alguma resistência, com a condição de que ficasse apenas alguns minutos e depois pudesse evadir do local num taxi. Contudo, na festa, ele conhece Clarice, uma jovem que poderia ser definida como o extremo oposto de Téo (a melhor definição seria “porra louca”, o autor mesmo a chamou assim, no Programa do Jô). De cara, a menina diz que não tem nada a ver com Clarice Lispector. Téo pede seu telefone emprestado, com a desculpa de que chamaria um taxi, para ir embora, mas aproveita a oportunidade para ligar para si mesmo, conseguindo assim o número de Clarice. No dia seguinte, um domingo, ele vai até o orelhão e liga para ela, passando-se por pesquisador do IBGE. Descobre onde Clarice estuda, o que acaba o levando, na segunda-feira, à universidade que a menina frequenta. Começa a segui-la quando ela sai acompanhada de uma amiga. Acompanha de longe a tarde que as duas passam no parque, tirando fotos. Depois, até que vá para casa, quando consegue descobrir onde ela mora. Fica vigiando de fora, notando o momento em que um carro se aproxima, um acompanhante de Clarice, para frustração de Téo. Ainda assim, segue o casal até um concerto e a seguir um restaurante, no qual a amiga de Clarice, com quem ela havia passado a tarde inteira, também acompanha. As horas se passam, mas em dado momento da noite, o par de Clarice vai embora, sozinho. Depois, Clarice e a amiga também saem, bêbadas, caminhando pelas calçadas. Com os faróis desligados, Téo as segue. Vê quando se beijam, sente nojo, e quando se despedem. Clarice quase é atropelada, encolhe-se num canto e, se não fosse a intervenção de Téo, passaria a noite ali mesmo. Ele a põe no carro e a leva para casa. Após tomar a chave dela, coloca-a dentro de casa, mas enfrenta o antagonismo da mãe de Clarice, assustada com o desconhecido. Ele vai embora, mas no dia seguinte, compra um livro de Clarice Lispector, e volta à casa, encontrando a sua Clarice sozinha. Deixa claro que está a fim dela, porém a jovem não lhe dá o mesmo retorno. Na verdade, perde a paciência com ele e pede que vá embora. Na visão de Téo, o presente é desprezado, o que o leva a bater com o livro na cabeça de Clarice, deixando-a caída no chão. Assim começa o sequestro, pois de tal forma envolvido, considerou que não tinha escolhas. E precisava fazer com que Clarice lhe desse uma chance.
Foi o que deu pra fazer em matéria de história de amor, sem trocadilhos com o livro de Elvira Vigna, pois o autor já falou em várias entrevistas que, após escrever Suicidas, sua mãe lhe pediu uma história de amor. Aí está, Dias Perfeitos.
Dito isso, resta ainda falar um pouco de Clarice, uma espécie de idealização feminina do intelectual reprimido – não que o autor tente definir Téo assim. Num contraste com sua forma metódica de organizar o mundo, esta menina desconcerta o protagonista. Enquanto ele necessita de uma ordem, ela destrói a ordem vigente e constrói uma própria, ou melhor, não constrói coisa nenhuma, não se preocupa, não está nem aí para isso. Clarice estuda artes e está escrevendo o roteiro de um longa-metragem, chamado Dias Perfeitos, no qual três amigas decidem tomar um carro e saírem para viajar. Após sequestrar Clarice, Téo se sente compelido a repetir o roteiro de viagem da história de sua amada. É uma chance de trazer para si esta liberdade que ela possui, muito embora o método adotado não seja dos mais românticos.
Os psicopatas
Há um livro interessante para quem se interessa por psicopatas chamado: Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. A obra é um caso de parricídio (verídico) do século XIX apresentado por Michel Foucault. Além de mostrar as notas de jornais, da época, e artigos coordenados por Foucault estudando o caso, a obra ainda traz o relato escrito pelo próprio Pierre Rivière, sobre como veio a concluir que matando sua mãe, sua irmã e seu irmão, acabaria por aliviar o fardo do pai. Tido como um bruto qualquer de uma aldeia francesa, apresentado o texto ao tribunal, ninguém mais conseguia ver o parricida desta forma. Havia uma coisa muito importante neste relato – uma lógica própria que justificava o acontecimento.
Da mesma forma, pela construção atenta, com o foco da narrativa em Téo, o leitor se depara com esta situação de “quase” concordar com as atitudes do protagonista. Escusos os atos de violência, notar-se-ia apenas uma paixão obsessiva de um rapaz qualquer.
Tudo que Téo quer é ter uma chance com Clarice. O que há de mal nisso, não é mesmo?
Tal pergunta renderia uma discussão ética que se arrastaria pelos mais diversos campos, filosófico, psicológico, do direito, etc. Mas poderíamos dizer que o que diferencia um psicopata de uma pessoa comum é a consciência (leia-se moral) incutida sobre o que é certo ou errado. Arrancado isso, não existe diferença entre um homem e um animal.
Considerações Finais
O livro é classificado como um romance policial, mas não espere um detetive com um cachimbo na boca, tirando conclusões mirabolantes. No entanto, seguindo a tradição do gênero, o talento de Raphael Montes está em prender o leitor desde a primeira página, seduzindo-o sempre com a pergunta: o que acontecerá com Téo daqui para frente?
Para quem vê a capa aí do lado e se questiona por que um anão? Basta dizer que, sim, eles estão no livro, de uma forma muito estranha, diga-se de passagem – poderia até se pressupor uma série de paralelos psicológicos com o personagem, mas deixemos isso para os leitores.
Dias Perfeitos é cruel e apaixonante, uma viagem pela cabeça de um psicopata.
Dias Perfeitos
Raphael Montes
Companhia das Letras
2014
278 páginas