Tolstói comenta o próprio método criativo e aponta as diferenças entre o romancista e o historiador.
Interessante para o leitor que vence as mais de duas mil páginas de Guerra e Paz, de Liev Tolstói, é encontrar ao fim do livro um apêndice com as palavras do autor sobre sua própria obra. Palavras que também servem de defesa ao seu método de trabalho, ou seja, do artista-romancista, em contraste ao que faria um historiador ao tratar de temas como a invasão napoleônica na Rússia.
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Para quem ainda não teve o privilégio de se debruçar sobre a referida obra, Guerra e Paz, com seus mais de quinhentos personagens, a história se passa entre os anos de 1805 e 1820. É importante observar que, durante este período, Napoleão Bonaparte tinha a Europa a seus pés e, apesar de outrora ter dito que a Rússia seria um importante aliado, demonstra-se interessado em conquistá-la. Na Guerra da Terceira Coalizão, em 1805, sob a liderança do general Mikhail Kutuzov e do czar Alexandre I, a Rússia sofreu uma derrota na Batalha de Austerlitz. No entanto, somente em 1812, como muito bem retrata Tolstói, Napoleão levaria suas tropas a Moscou. Acabou que saiu da Rússia com “uma mão na frente e outra atrás”, possuindo menos de dez por cento dos quase seiscentos mil soldados com que havia invadido o país – uma ironia da guerra, na qual pouco se ganha, mesmo quando se vence.
Além de investir nas relações dos personagens com estas guerras, o escritor retrata com palavras o comportamento da aristocracia russa. Seus anseios e desejos, abordando temas como a questão dos servos, as sociedades secretas, a importância do casamento num contexto apenas de interesse financeiro, entre outros.
Apesar de não ter um protagonista, as duas famílias em maior evidência são os Rostov e os Bolkonski, além de Pierre Bezukhov.
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Voltemos nossa atenção ao que disse Tolstói, num texto apendicular ao romance, sobre o que diferencia a postura do romancista e do historiador:
O historiador e o artista, na descrição de uma época, têm objetivos totalmente diferentes. Assim como não faria sentido que o historiador apresentasse uma personagem histórica no seu conjunto com toda a complicação dos pormenores da sua existência, também falsearia o seu objetivo se representasse o seu herói sempre numa atitude histórica, Kutuzov não estava sempre montado num cavalo branco com um óculos na mão, a examinar o inimigo. (…) Para o historiador, desde que se trate da colaboração desta ou daquela personalidade numa grande obra, existem heróis; para o artista, no ponto de vista das reações perante os mil incidentes da existência, não pode nem deve haver heróis, mas homens apenas. O historiador é por vezes obrigado a forçar a verdade para fazer com que concordem todos os atos de uma personagem histórica com a ideia que ele faz dela. O artista, pelo contrário, considera esta ideia preconcebida incompatível com o seu desígnio e trata apenas de compreender e de nos mostrar, não o autor deste ou daquele ato, mas um homem.
Parece até mesmo que Tolstói sugere não haver heróis, algo por demais interessante. Ao se pensar em Guerra e Paz, por mais que se examine o romance com cuidado, não se encontra um herói. Existem atos heroicos, mas cometidos por pessoas que no momento seguinte podem se mostrar avarentos, mentirosos, gananciosos ou com outros defeitos. O historiador trabalha com os fatos, e precisa pintar um quadro que pareça harmonioso. Para isso, deixa que sua mente ligue os dados e também acaba fantasiando, unindo-os a seu favor. O romancista, por sua vez, retrata os homens, seus sentimentos em relação aos acontecimentos, assim como Tolstói realiza neste romance.
Ainda sobre sua visão e método, o escritor russo conclui desta forma:
Eis, pois, como as tarefas do historiador e do artista são inteiramente diferentes e como o meu desacordo com os historiadores na descrição dos acontecimentos e no retrato das personagens a ninguém deve surpreender. Mas o artista não deve perder de vista que a ideia que o povo tem das personagens e dos acontecimentos não provém da fantasia, mas, sim, da forma como os documentos foram agrupados pelos historiadores. E eis aqui porque, apesar de compreender de maneira diferente estas personagens e estes acontecimentos, o artista, tal qual como o historiador, deve guiar-se pelos documentos históricos. Em todas as páginas do meu romance em que falam e atuam personagens históricas nada inventei, mas servi-me de materiais que encontrei e que constituíram, no decorrer do meu trabalho, toda uma biblioteca. Se me não parece oportuno agora citar aqui os títulos das obras consultadas, estou pronto a fazê-lo quando foi necessário.
Pode parecer que Tolstói recua ao confessar que utilizou-se de fatos históricos para escrever Guerra e Paz, mas na realidade, ao realizar a obra desta forma, apenas a torna mais verossímil ao leitor. O método do escritor consiste em se utilizar dos fatos gravados na mente do leitor, considerando que se trata de uma romance histórico, e aproveitá-los para dar base à sua ficção. O que há aqui é o seguinte: a história a serviço da ficção.
Quem deseja entender o conceito aplicado, encontra em Guerra e Paz uma realização magistral, considerando-se que Tolstói narra até mesmo a visão de Napoleão Bonaparte, construindo assim um mosaico histórico-ficcional; além de revelar o poder da pena de um romancista.