Comédia dramática “Tudo” discute capitalismo e crise de valores em três fábulas morais. Em cartaz no Sesc Bom Retiro até 9 de outubro.
Uma comédia dramática para refletir
Em uma época em que o pensamento binário insiste em apontar soluções simplistas, a peça Tudo propõe a reflexão sobre algumas contradições sociais a partir de três fábulas morais. A comédia dramática do argentino Rafael Spregelburd tem tradução e direção de Guilherme Weber e elenco formado por Julia Lemmertz, Vladimir Brichta, Dani Barros, Claudio Mendes e Márcio Vito. Depois do lançamento no Festival de Curitiba e da temporada no Rio de Janeiro, a obra ganhou alguns ajustes e estreou no Sesc Bom Retiro, São Paulo, em 2 de setembro, onde segue em cartaz até 9 de outubro.
No palco, cada um dos três atos se desenvolve com base em uma pergunta, mas as respostas ficam sempre a cargo do público. Com elas, o dramaturgo questiona as totalizações e aponta suas incongruências. As contradições do convívio social são apresentadas por meio de problemas dos personagens, em situações que oscilam entre a comédia, o drama e o absurdo. A montagem valoriza a expressão corporal dos atores com a escolha de um cenário quase vazio, com apenas algumas cadeiras, e o contraste entre o claro e o escuro marcado pela iluminação. No cerne de Tudo estão o dinheiro e o poder.
Por que todo Estado se torna burocracia?
A primeira fábula, cuja pergunta é “por que todo Estado se torna burocracia?”, traz uma repartição pública em que servidores cumprem suas tarefas de forma quase automática, enquanto exercem seus pequenos poderes e se distraem com trivialidades cotidianas. As distorções do capitalismo ficam em evidência em uma das falas dos personagens, pronunciada em coro: “cada um por si e todos por ninguém”. Com diálogos bem-humorados, a trama sobre os paradoxos entre trabalho e liberdade ganha um caminho inusitado depois que uma das personagens decide colocar fogo em uma cédula de dinheiro. O vigor e o entrosamento do elenco se destacam e fazem da cena um deleite para o público.
Por que toda arte vira negócio?
O fogo também está presente na segunda fábula, que explora a pergunta “por que toda arte vira negócio?”. A trama se situa em um jantar de Natal em que os convidados protagonizam uma acalorada discussão sobre os valores da arte e do trabalho intelectual. Ironicamente, a descontração e a anarquia do artista plástico da história, interpretado por Brichta, não o exime de enfrentar as limitações impostas pelo sistema à sua suposta liberdade de criação.
Por que toda religião vira superstição?
O tom dramático predomina na terceira fábula, cuja pergunta fundadora é “por que toda religião vira superstição?”. Nela, um escritor de livros infantis e sua esposa vivenciam um clima de tensão provocado pelo medo que a mulher tem de perder o filho recém-nascido. A cena é permeada por uma narração, feita no palco por Lemmertz, que conta a história bíblica das dez pragas que atingiram o Egito depois que o faraó se recusou a libertar o povo hebreu da escravidão. Em meio ao desespero, a mãe do bebê busca formas de evitar que o pior aconteça, que vão da contratação de um médico à busca por bênção em uma igreja.
Conclusão: pensar além da polarização
Tudo evita fazer conclusões, mas é um belo convite ao espectador disposto a pensar nos problemas contemporâneos sem as paixões suscitadas pela atual polarização da sociedade. A obra está em cartaz até 9 de outubro no Sesc Bom Retiro, em São Paulo. Os ingressos custam R$ 15 (credencial plena Sesc), R$ 25 (meia entrada) e R$ 50 (inteira).
Créditos HL
Esse texto é de Rebeka Figueiredo da Guarda para nossa coluna HL em Cena. Ele teve revisão de Raphael Alves e edição de Nicole Ayres, editora assistente do Homo Literatus.