Último lançamento da britânica Caitlin Moran, Do que é feita uma garota, mistura autobiografia e ficção, presenteando o leitor com uma personagem problemática, incômoda – e apaixonante
Depois do sucesso de Como Ser Mulher, seu “manifesto feminista”, Caitlin Moran embarca no mundo dos romances. Ou quase. Publicado como obra de ficção, Do que é feita uma garota é praticamente um livro de memórias da autora, que doou suas lembranças de adolescente – da família pobre e numerosa às aventuras como crítica musical – a uma protagonista de 14 anos, Johanna Morrigan.
Cheia de irmãos, com uma mãe sofrendo de depressão pós-parto e um pai impossibilitado de trabalhar e sempre meio bêbado, Johanna não é nossa heroína de contos de fadas. Ela está cansada. Não aguenta mais os delírios de seu velho pai de que, um dia, ele será um astro do rock. Não quer mais dividir o quarto com dois irmãos. Está farta da vidinha miserável que leva, na qual o melhor momento do dia pode ser o furto de um desodorante. Johanna tem bem claro em sua cabeça do que ela precisa: dinheiro. A vitória em uma pequena competição de escrita parece ser o início de seu estrelato, mas em uma bem-humorada reviravolta na trama, a conquista leva a garota a passar a maior vergonha de sua vida na televisão local. E é então que, desorientada, Johanna decide morrer. Mas não de verdade.
O que a protagonista quer fazer é enterrar, de uma vez por todas, Johanna Morrigan. E virar uma pessoa completamente diferente. Novos gostos, visuais, sucessos. Surge, então, a sua nova persona, Dolly Wilde, pronta para levar uma vida como mulher madura, endinheirada e poderosa. Tornar-se uma deusa do sexo.
É importante dizer que Dolly não é agradável – o que não é um problema para a narrativa. Aliás, esse é o fator que carrega o livro nas costas. A obra lembra de Bad Feminist (ainda sem prazo de lançamento no Brasil), em que Roxane Gay traz um ensaio sobre a importância de personagens femininas desagradáveis, porém não vilanizadas. Personagens problemáticas, mas que merecem a atenção do leitor, porque elas levam vidas interessantes. Lendo a história de Dolly Wilde, é impossível discordar. Ela é inconsequente, imatura, atrapalhada, mentirosa e, por vezes, má. Consegue um trabalho resenhando shows e discos para uma revista musical, e passa a aniquilar todas as bandas que avalia. É com prazer que Dolly conta a emoção de sair munida com um bloco de anotações e um sorriso sarcástico, já preparada para acabar com a carreira daqueles músicos – nas palavras dela, “eviscerá-los“. E, aqui, fica claro o quanto a autora coloca de si em sua criação.
Na coletânea de ensaios Moranthology (lançada apenas em inglês), Moran comenta sobre a própria carreira como crítica musical. Envergonhada, faz referência a um de seus textos, publicado quando era adolescente. Na resenha, ela os acusou de serem “revoltantes: responsáveis pelo clima musical em que as bandas se arrastam em suas barrigas com apenas três acordes”. O texto é pontuado com adjetivos como “revoltante” e “pútrido”, e termina com a sugestão de que o vocalista deveria se matar. Isso é o que Caitlin Moran viveu, e é assim que ela constrói Dolly. No entanto, há algo que nos impede de abandonar sua história: ela é tão humana. Faz isso tudo porque se sente sozinha, insegura, incapaz, culpada. Quer o amor. Uma vida mais fácil para os pais. Quer gostar da imagem que vê no espelho. E por ser tão real, é impossível não torcer por ela. Mesmo com todas as cabeçadas que ela dá no livro. E são muitas. Mesmo. Mas vibramos por ela. E, acima de tudo, rimos com ela.
O texto, divertido e nada antisséptico, constrói situações engraçadas e arranca risadas altas. Vale dizer que boa parte das piadas não deve ressoar com os leitores masculinos, que precisam atravessar páginas e páginas de descrições sobre o que acontece com a vagina da protagonista. Porém, há algumas passagens bem mais profundas, que levam a pensar. A autora conclui seu romance deixando no ar a ideia de que, como o título em inglês sugere (“Como construir uma menina“), uma garota não “nasce garota”. Ela precisa construir a si mesma, do zero. E quebrar a cara, perceber que a fundação está fraca, demolir. Reconstruir.
Caitlin Moran traz uma heroína desagradável, que não presenteia o leitor com um grande sucesso ou um romance de cinema. Ela traz um agrado maior: esperança. Faz pensar que somos todos um pouco errados, mas dá para consertar uma parte. E outra parte continua assim: errada. Mas isso não é problema. Aliás, alguém até pode torcer por nós.