Lendo “Dom Quixote” nos dias de hoje

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Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, continua atual? É possível lê-lo nos dias de hoje?

 

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Supõe-se que Miguel de Cervantes Saavedra nasceu no dia 29 de setembro de 1547. Não dá para ter certeza absoluta da data, considerando-se a distância temporal que nos separa desse que é tido como maior escritor de língua espanhola de todos os tempos.

Somente aos 58 anos conseguiu trazer à luz sua obra máxima: O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha. Na verdade o que foi lançado naquele ano de 1605 foi apenas a primeira parte da extensa narrativa, que – já na época – obteve grande repercussão.

Quem se aventura hoje a ler o livro inteiro se surpreende com a atualidade do texto. Sim, atualidade de uma narrativa de mais de 400 anos, por incrível que pareça. Apesar dos hábitos antigos, das concepções arcaicais e das ideias dos personagens (que hoje nos parecem tão distantes), o escrito não nos é impermeável.

Pelo contexto é perfeitamente possível compreender os arcaísmos de linguagem, basta não ficar obsessivamente tentando entender de maneira completamente literal e precisa tudo que é dito ou descrito. Indo em frente na leitura, as coisas vão se esclarecendo. É claro que não se deve aconselhar o livro para quem ainda não adquiriu o hábito de leitura, pois se trata duma obra que certamente assustaria quem ainda não se tornou leitor e que, aí, poderia mesmo nunca vir a ser.

Mas aqueles que já se acostumaram a ler romances e contos não precisam tremer diante da grandiosidade do texto. Ele não foi feito para ser considerado sacrossanto e permanecer intocado como um monumento na estante da sala. Não há por que levá-lo tão a sério.

O livro é uma grande brincadeira, uma gigantesca avacalhação com as novelas de cavalaria, ainda em voga na época. Trata-se da história de um homem pacato que vivia sossegadamente em sua fazenda em companhia de familiares. Ele começa a se entorpecer mais e mais com novelas de cavalaria e, enlouquecido, passa a se considerar um legítimo cavaleiro heróico, enfurecendo-se contra qualquer um que afirme que a cavalaria andante nunca existiu de fato. Seu nome seria Quijada, Quesada, ou Quijana – escreve o narrador – mas adota o título pomposo de Dom Quixote. Sai a perambular montado em seu magérrimo cavalo Rocinante, acompanhado do simplório Sancho Pança e seu burro.

O escrito é repleto de humor que ainda hoje pode ser apreciado, apesar da distância temporal. Dom Quixote, coitado, apanha à beça ao longo de suas aventuras. Bate-se contra moinhos de vento, imaginando serem gigantes, acaba ferido por uma das pás de moinho, que o arremessa longe. Ataca ovelhas, pensando se tratar de um exército, vindo a ser pisoteado pelo rebanho e espancado pelos pastores. Vem a assumir a alcunha de Cavaleiro da Triste Figura justamente por seu aspecto fustigado e ridículo decorrente de suas risíveis desventuras.

O livro não deve ser encarado de maneira excessivamente séria, sisusa. Trata-se de grande literatura, sim. Mas uma literatura para ser lida e não venerada como um ídolo intocável. Esse respeito exagerado pode, inclusive, embotar o próprio entendimento do texto (ou nos amedrontar diante de sua “majestade”) – muitos deixam de ler o livro por imaginá-lo inacessível; outros o examinam partindo de pressupostos errôneos como o de ver em Dom Quixote uma figura heróica. Longe de ser herói, ele é uma caricatura, um tipo forjado como crítica ao heroísmo, uma sátira aos livros de cavalaria, denunciados como alienantes.

Lendo Dom Quixote hoje, nos surpreendemos com trechos que nos parecem bem modernos. Temos o hábito de pensar nos séculos passados como épocas repletas de formalismos, sem lugar para o riso. Da mesma forma, tendemos a achar que jogos de linguagem, e cruzamento dos planos puramente ficcionais com outros da realidade histórica, são invenções de nossos dias.

Os capítulos do romance têm títulos descritivos do que ocorre em cada episódio. Mas, em alguns momentos, trazem mais humor que esclarecimento do que virá na narrativa. É o que se vê nos seguintes capítulos da segunda parte: “IX- Onde se conta o que nele se verá”, “XXXI- Que trata de muitas e grandes coisas”, “LIV- Que trata de coisas tocantes a esta história e a nenhuma outra”, “LXVI- Que trata do que verá quem o ler, ou do que ouvirá quem o ouvir ler”, “LXX- Que se segue ao sessenta e nove e trata de coisas que não são escusadas para a clareza desta história”. Não parecem brincadeiras modernas?

Lançada por Cervantes em 1615, a segunda parte do romance traz um interessante jogo entre realidade e ficção. É que nessa continuação, alguns personagens dizem terem lido o livro anterior (justamente o que havia sido lançado em 1605, no “mundo real”). O entrelaçamento do factual com o fictício é, ainda, levado mais longe quando o personagem Dom Qixote critica uma falsificação da obra de Cervantes surgida em 1614: uma suposta sequência de seu livro, perpetrada por Alonso Fernández de Avellaneda. O livro de Avellanda, segundo o que diz o personagem Dom Quixote, só traria mentiras a seu respeito, falando de coisas que ele nunca fizera e de lugares em que nunca tinha estado.

O Cavaleiro da Triste Figura ainda vem a encontrar um personagem da obra falsificada, que acaba admitindo nunca o ter conhecido, mas sim a uma outra pessoa a quem supôs ser Dom Quixote.

Ainda hoje encontramos gente simplória que acredita piamente ter lido o Dom Quixote original na infância, quando – na verdade – só leu alguma adaptação infanto-juvenil. Eu mesmo já encontrei alguns indivíduos ainda enganados.

Há quem argumente que isso é bom, pois a pessoa não conseguiria ler a obra verdadeira. Discordo. Acredito com sinceridade na capacidade do ser humano. Não sou melhor que ninguém e, depois de adulto, consegui enfrentar o livro. Por que outros não conseguiriam? A narrativa tem 126 capítulos e mais de 400 anos de idade, mas e daí? A Bíblia, por exemplo, terminou de ser escrita há uns 20 séculos e mesmo assim é lida por muita gente de variadas culturas e diferentes níveis de escolaridade, não é mesmo?

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Autor do livro de crítica literária Malandragem, Revolta e Anarquia: João Antônio, Antônio Fraga e Lima Barreto (Editora Achiamé, 2005). Em 2011, recebeu menção honrosa no IX Concurso Municipal de Conto – Prêmio Prefeitura de Niterói com "O Anão", posteriormente publicado. Em 2013, obteve menção honrosa no 7º Prêmio UFF de Literatura, com o conto "(Des)encontro", incluído em antologia publicada pela EdUFF. Em concursos de contos do Centro Literário e Artístico da Região Oceânica de Niterói (CLARON) ganhou 1º lugar (em 2016), 2º lugar (2017) e 7º lugar (2018). No Concurso Literário Bram Stoker (contos de terror), foi contemplado com o 10º lugar em 2018.

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