Dostoiévski preencheu linhas no livro negro das dívidas dos jogos de sorte
Voam-se sete pedras à cruz toda vez que alguém discorda do seguinte fato: os seres humanos criam vícios para compensar frustrações. Você não precisa ser da linhagem de Madre Teresa para discordar disso e argumentar que não mergulhou nas drogas depois de morrer na praia do último vestibular. Mas, se você não desistiu e seguiu o nobre conselho do Raul, você criou algumas conexões neurais guiadas pela sua força de vontade, que são as mesmas presentes num viciado sem nenhuma grama dela.
O impulso que te dá prestígio na escala moral de valores quando você recusa uma pedra para ler São Pedro, é o mesmo que se encontra em outras pessoas que, face à frustração, preenchem copos, clínicas, recomeços e estatísticas. Alguns, como Dostoiévski, preferiram preencher várias linhas no livro negro das dívidas dos jogos de sorte.
Antecipando Nabokov em um século, nosso querido Fiodor começou a redigir cartas de amor em sua quarta década de vida para uma ninfeta de dezesseis anos. Com ela, percorreu os mais sublimes recônditos de azar do continente europeu. Cassinos e mais cassinos assistiram o escritor russo investir seu dinheiro em perdas atrás de perdas.
“E por que o jogo há de ser pior que qualquer outro meio para adquirir dinheiro, que o comércio, por exemplo? É certo que dentre cem um ganha. Mas… que me importa a mim isso?” (Trecho de O Jogador)
Entre os altos e baixos (mais baixos do que altos) da montanha russa que é a vida dos viciados em jogos de azar, o prazer de se estar na corda bamba — com sensualíssimos flertes com a bancarrota financeira — transcendia o prazer sexual. Ver os dados perseguindo a fortuna, para no minuto seguinte perder o dobro do objetivo da busca, para Dostoiévski era mais perigosamente emocionante do que tentar fritar um ovo de dentro da frigideira.
Stolovski, seu editor e carrasco, deu apenas trinta dias para nosso viciante escritor preparar uma nova obra. Quem mais poderia em um mês escrever um clássico para todos os tempos? Tal livro, intitulado O Jogador, já estava escrito pela vida sem limites entre a roleta e as apostas protagonizada por um Fiodor extremamente endividado e triste. Por que não sentar e passar ao papel minhas memórias? Dessa vez, a sorte estava ao lado dessa grandiosa aposta literária. Sorte a nossa.
“[…] deveria ter me retirado naquele momento; mas ocorreu-me certa sensação estranha, algo assim como um prurido de desafiar a sorte, como capricho de fazer-lhe uma pilhéria, de estirar-lhe a língua. Fiz a parada maior que se permite, ou seja, quatro mil florins, e perdi. Depois, já acalorado, tirei todo dinheiro que me restava, pu-lo naquela mesma parada e voltei a perder; depois do que me afastei da mesa como que aturdido.” (Trecho de O Jogador)
A roleta russa que Fiodor experimentou não cuspia fogo, mas podia ser encontrada em vários cassinos de sua terra natal. Por muito tempo o escritor não colocou ponto final nesse vício, que, como em qualquer ser humano, era sua válvula pessoal de escape diante das frustrações de uma vida conturbada. Se não fosse, claro, o seguinte detalhe: seu desejo de redenção não estava escrito nos dados da satisfação imediata, mas – antes de tudo – em toda sua manifestação artística.
Sim, meus senhores: o mesmo cão que protege o dono também morde a mão que o alimenta. O mesmo vício de segurança, plenitude e sucesso que dá à luz “bons hábitos” também os aborta e se manifesta em outras vias mais trevosas quando a vida escolhe mudar a dinâmica das cartas. E o mesmo homem que se afoga num mar de dívidas de jogo também reverte a onda de azar escrevendo os mais célebres livros. É a metafísica do artista retirando dos frutos podres da desgraça as sementes de uma nova primavera.
É por esse motivo que eu desejo que, toda vez que o homem subterrâneo confrontar suas frustrações e zombar de seu heroísmo, você tenha a ousadia de um Raskolnikov, a pureza de um Aliêksei e a bondade do Idiota. E se, apesar de tudo, seus sonhos mais vívidos não passarem de recordação na casa dos mortos, evite todo crime e castigo com a perspicácia de um jogador. Agora desce mais uma, por favor.