Em seu testamento, o marquês afirmou o seguinte: “Proíbo que meu corpo seja aberto sob qualquer pretexto que seja. Peço com o mais vivo interesse que ele seja guardado quarenta e oito horas no quarto onde eu morrer, posto num caixão de madeira que só será fechado ao cabo das quarenta e oito horas prescritas acima”.
Ao prefaciar o conjunto de ensaios Sade, Fourier, Loyola (2005), publicados pela primeira vez em 1971, o crítico francês Roland Barthes, renomado estudioso das obras do Marquês de Sade, fez uma enigmática afirmação: “nenhum desses autores é respirável”. A partir dessa constatação, Barthes propôs uma leitura comparada entre “o escritor maldito, o grande utopista e o santo jesuíta” (p. ix). Na verdade, o denominador comum entre esses três cânones das letras europeias é que todos são, cada um a sua maneira, fundadores de uma nova linguagem ou comunicação artística. Sobretudo, travar contato com essa literatura “não significa necessariamente cumprir em nossa vida o programa traçado nos livros desse autor” (p. xv). Ao se completarem 274 anos do nascimento de Sade, o desafio proposto por Barthes de ler esse polêmico escritor na contramão de discursos simplistas ainda é atual.
É necessário dizer que esse autor não foi o primeiro francês que elaborou crônicas nas quais membros do clero e nobreza protagonizam situações sexuais escandalosas. Ao passo que o absolutismo ainda agonizava, no século XVIII, toda a França foi inundada por panfletos, tratados filosóficos, contos e outras formas de textos que a polícia monarquista classificou na época de “baixa-literatura”. As obras dessa vertente que eram apreendidas, antes de servirem para o deleite dos juízes e promotores que as julgavam, eram armazenadas lado a lado do que são hoje considerados clássicos do iluminismo como Diderot, Voltaire e Rousseau. Quer dizer, as autoridades absolutistas não diferenciavam rigidamente o conteúdo desses livros.
Na edição brasileira de Ciranda dos libertinos (1988), lançada pela Editora Max Limonad, em 1988, encontra-se uma reunião de textos nos quais é possível perceber como o pensamento de Sade se organiza. Um dos escritos que mais me chama a atenção nessa antologia é um fragmento do testamento do literato, feito no hospício de Charenton, datado de 30 de janeiro de 1806. Pouco tempo depois, em 1814, Sade faleceu nas dependências desse manicômio. Em seu testamento, o marquês afirmou o seguinte: “Proíbo que meu corpo seja aberto sob qualquer pretexto que seja. Peço com o mais vivo interesse que ele seja guardado quarenta e oito horas no quarto onde eu morrer, posto num caixão de madeira que só será fechado ao cabo das quarenta e oito horas prescritas acima” (p. 337). Sobre sua cova, o autor exigiu que, “com o tempo, a fossa volte a ser forrada pela mata antes, e os traços do meu túmulo desapareçam da superfície da terra; como me sinto lisonjeado por minha memória se apagar do espírito dos homens!” (p. 338).
Que tipo de escritor é esse que possuiu a coragem de amaldiçoar a própria posteridade? Caso o fragmento acima seja lido como parte do legado intelectual de Sade, suas implicações estéticas podem se tornar mais claras. Toda a literatura modernista foi fundamentada, justamente, em torno desse movimento de transgressão do estilo racionalista e edificante que vigorou no século XVIII. Ao transformar o ato de escrever também em um ato de morte, no qual o literato é capaz de calar suas convicções mais profundas para dar voz ao outro e a pluralidade de visões de mundo das personagens, a corrente modernista acabou prevalecendo ao longo de todo o século XIX e XX no ocidente. Sade desejou ser mais lembrado pelo teor de seus escritos do que por sua personalidade e essa é a pedra angular de toda a arte moderna.
Teria o Marquês de Sade organizado um sistema político coerente com sua filosofia lúbrica e com os ideais republicanos de liberdade, igualdade e fraternidade? Em 2009, a Editora Imaginário lançou o panfleto sadiano Franceses, mais um esforço se quiserdes ser republicanos. Nesse texto, fruto de um discurso pronunciado pelo autor no parlamento francês em plena efervescência do liberalismo, a burocratização da democracia representativa – mecanismo que serve para distanciar as demandas populares das decisões tomadas pelos políticos – era percebido como algo tão nocivo quanto o Absolutismo para Sade. Como criar leis sem estabelecer tiranias? Sade buscará resolver essa aporia em nome de uma França verdadeiramente “livre”.
A utopia sadiana, expressa em Franceses, mais um esforço…. consiste em uma sociedade livre do que o escritor denomina de “terror religioso” (p. 37). Ao configurar essa visão política para a construção de uma França repleta de força e pureza, logo o escritor se contradiz em relação à sua proposta inicial de não almejar estender seu projeto além de sua nação. Os cidadãos franceses, libertos dos dogmas católicos, estabeleceriam “a lei do Universo” (p. 37). O que é considerado crime no limiar da modernidade: calúnia, roubo, impureza e assassinato.
Sade engendra o argumento de que se uma pessoa é vítima de um crime, ela é vítima de sua própria negligência e não do criminoso. Ao discorrer sobre uma sociedade na qual os libertinos gozariam de plena liberdade para sodomizarem às mulheres, inclusive as mais jovens, Sade cria uma aporia: deseja uma sociedade livre da tirania, mas quer estabelecer punições para quem se recusar a se submeter ao seu autoritarismo sexual. Talvez somente uma pessoa que passou mais da metade da vida presa, entre prisões e hospícios, usasse todo seu tempo disponível para pensar em todas as maneiras possíveis de se transgredir as leis. Esse fato é o que torna perigoso, para os leitores mais ingênuos, assim como a personagem Justine, levar a sério demais as concepções sobre a vida e o prazer diluídas ao longo das obras do Marquês de Sade.