É absurdo pensar em Kafka ao ler Mutarelli?

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Lourenço Mutarelli jamais escondeu a influência de Franz Kafka em seu trabalho, principalmente em sua obra quadrinhográfica. Esta é uma dupla leitura, aproximando ambos os autores por meio de suas obras.

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Ilustração: Valter do Carmo Moreira

A HQ Mundo Pet é uma coletânea de histórias que foram produzidas, originalmente, para o extinto site CyberComix, entre 1998 e 2000, e mais tarde compiladas em livro. Assim como os contos ou novelas de Kafka, essas histórias revelam o interior da alma e da psique humana por meio de situações corriqueiras, cotidianas e de idiossincrasias apresentadas de modo absurdo.

Composta por doze histórias curtas, algumas de teor confessadamente autobiográfico, Mundo Pet revela um sujeito deslocado, sedimentado e esmagado por momentos irreversíveis da condição humana, sufocado pelas convenções sociais.

Nesse sentido, é inevitável traçarmos uma aproximação entre o paulistano Lourenço Mutarelli e o autor tcheco Franz Kafka, e a relação entre algumas de suas obras e as histórias presentes em Mundo Pet.

O absurdo figura como lugar comum nas obras de ambos os autores, em consonância com o termo kafkiano e sua definição proposta por Modesto Carone, em seu livro Lição de Kafka. Definição essa que foge às banalidades de seu entendimento, muitas vezes, raso, causado por seu uso indistinto, aplicado a tudo que é estranho e absurdo, descaracterizando o realismo de base da prosa de Kafka, como aponta Carone:

“Pois a rigor é kafkiana a situação de impotência do indivíduo moderno que se vê às voltas com um superpoder (Úbermacht) que controla sua vida sem que ele ache uma saída para essa versão planetária da alienação – a impossibilidade de moldar seu destino segundo uma vontade livre de constrangimentos, o que transforma todos os esforços que faz num padrão de iniciativas inúteis” (CARONE, 2009, p. 100).

Em Mundo Pet, o absurdo é a total ausência de fim. Em histórias como Dossiê Stick Note, é possível sentir essa ausência de fim. Em Estampa Forjada e A Ninguém é Dado Alegar o Desconhecimento da Lei, além da ausência há o “dano” sofrido por seus personagens, que parece ser consequência de uma “transgressão”. No entanto, o motivo pelo qual seus protagonistas são punidos não é evidenciado nas histórias.

Isso é o que também acontece a Josef K., um bancário que é processado e perseguido sem saber o motivo, em O Processo.  Já em O Castelo, K., o agrimensor, fica às voltas, sem encontrar respostas para suas interrogações, tentando, inutilmente, entrar no castelo. Em ambos os casos, o Estado representa uma força maior, o Úbermacht, inalcançável e ininteligível, que os subjuga com sua indiferença e seu silêncio.

Essa culpa sentida pelos personagens de Kafka, segundo Salvatore D’Onofrio (1990), denomina-se “isolamento humano”, que também afeta os protagonistas de Estampa Forjada A Ninguém é dado Alegar o Desconhecimento da Lei. Mutarelli e Kafka constroem um mundo estranho e fechado à compressão de seus leitores. Assim, cabe a nós arriscar uma interpretação, mesmo sabendo ser esta, inevitavelmente, subjetiva.

Tanto para Kafka quanto para Mutarelli, o insólito figura como conduta normal, a escrita limpa e protocolar de ambos assegura isso, mesmo que as imagens digam o contrário ao apontarem para o fantástico.

A peculiaridade desse “fantástico” em Mutarelli, assim como em Kafka, “reside na descrição artística do desespero do homem ante os contrastes irredutíveis da existência” (D’ONOFRIO, 1995, p. 165). D’Onofrio classifica o fantástico kafkiano como fantástico-absurdo, pois Kafka põe seus personagens em situações de física, ética ou lógica inexplicáveis. O comportamento humano é um mistério incompreensível e insustentável, e é nesse meandro que nascem as histórias de Mutarelli.

 

Referências:

CARONE, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo: Cia das Letras, 2009.

D’ONOFRIO, Salvatore.  Teoria do Texto 1:  Prolegômenos e Teoria da Narrativa. São Paulo: Ática, 1995.

KAFKA, Franz.  A Metamorfose seguido de O Veredicto.  Porto Alegre:  L&PM, 2007.

______. O Castelo. São Paulo: Cia das Letras, 2010.

______. O Processo. Porto Alegre: L&PM, 2008.

MUTARELLI, Lourenço. Mundo Pet. São Paulo: Devir, 2004.

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