De quem é a literatura? Quais critérios definem um escritor? Só é escritor quem publica livros? Livros inacabados têm vez na memória literária? Amadores têm direito à literatura?
Livro: o vaso nobre da literatura
A arte literária é uma das que mais sofre com a expectativa pela obra, historicamente identificada com a convenção do livro.
E o que é o livro? O fruto da profissionalização do escritor e da capitalização de sua arte. No entanto, ainda falar do livro como forma.
Para ser chamado de livro, ele precisa ser um conjunto coeso e acabado. Enquanto a obra plástica, a canção e até o filme voam sozinhos, o texto literário (poema, conto, crônica ou qualquer outra unidade mínima da expressão) ainda enfrenta alguma dificuldade para justificar sua presença no mundo fora do contexto ou da perspectiva futura do livro.
Esse é um dos motivos porque os periódicos – hoje repaginados na rede – tiveram e têm tanta importância para circulação dessa produção (como esquecer a importância do folhetim para a obra de gigantes como Machado de Assis e José de Alencar?) Apesar disso, muita gente ainda não os considera vitrines lá muito válidas de literatura “séria”. Quando muito, boas “incubadoras” de escritores.
Não dá para discutir: o livro é o vaso nobre da literatura, a confirmação do escritor como mais do que um caso de sorte (o status sobe se ele não parar no primeiro).
Quase, meio, pouco?
Refletindo um pouco sobre essa dependência que a arte literária criou com o livro, que também passou a modelá-la, tomemos o romance como exemplo: uma história contada pela metade ou sem desfecho não é aceitável para um livro, certo? E por quê?
Só porque o leitor ficaria, nesse caso, privado de saborear o final? Ou porque uma história assim seria indigna do livro?
Pois é, o texto inacabado e o texto avulso (não quero confundi-los) não costumam ser recebidos com simpatia, ou não enchem tanto os olhos como o livro. No mínimo, eles causam algum estranhamento, aquela coceirinha na língua com a pergunta: “cadê o resto?”, ou “só isso?”
Por trás dessa reação tão comum parece estar um medo da insuficiência, ou melhor, da incompetência. Entre os autorizados, ele tantas vezes vem disfarçado de “controle de qualidade”. Mas é preciso muito cuidado com esses juízes e seus juízos absolutos, já que alguns dos melhores perfumes podem estar nos “menores” frascos (isso quando não andam soltos por aí).
Essa dita incompetência, diriam, não pode passar; a patrulha dos padrões estéticos está atenta aos seus menores avanços.
Os fantasmas do quase, do meio, do pouco são velhos, mas continuam ameaçando a grandeza dos modelos. Nossa cultura crítica, baseada no louvor do realizado – seja o que for, que seja grande! – e, assim, no medo da falta, está despreparada para fazer contato com esse quase, venha ele de onde vier
O mito do quase
Existe régua universal para dizer que algo é pleno ou não, no tamanho e na qualidade? Só vale o livro finalizado? Toda obra inacabada é necessariamente insuficiente, fracassada ou preguiçosa? Se o escritor “só” publicou um livro, foi golpe da sorte e, por isso, ele é irrelevante? E o valor literário não pode morar entre os publicantes ocasionais da rede, aqueles que provavelmente nunca terão seu nome na capa de um livro nem ganharão prêmios?
A própria história canônica da literatura – considerando que um dos grandes administradores do cânone é o tempo – está cheia de exemplos que quebram tal mito, que chamarei de mito do quase. Quer ver?
Quebrando o mito
A poeta americana Emily Dickinson (1830-1886), considerada uma precursora da poesia moderna, publicou em toda a sua vida cerca de dez poemas, quase sempre de forma anônima.
O ficcionista tcheco Franz Kafka (1883-1924), que gosto de chamar de pintor do pesadelo acordado, uma das mais agudas sensibilidades do século XX a representarem a sociedade industrial e burocratizada, deixou três romances inacabados, O processo (1925), O castelo (1926) e O desaparecido ou Amerika (1927). Desses, pelos menos os dois primeiros estão entre as maiores obras da ficção moderna.
Vale lembrar que essas e outras pérolas só se tornaram conhecidas porque o melhor amigo de Kafka, Max Brod, desobedeceu à ordem expressa do moribundo de que seus manuscritos (com poucas exceções) fossem destruídos após a sua morte. (Viva o amigo da onça!).
E nesse sentido, façamos uma observação importante, antes que você argumente que se a morte for a causa da interrupção da obra não conta: Kafka não deixou esses projetos inacabados porque morreu. O mais provável, segundo especulam críticos e biógrafos, é que ele tenha abandonado esses textos porque vivia afogado em dúvidas sobre sua competência como escritor.
E o que dizer de uma menina de 13 anos que em fins do século XIX, entre as montanhas diamantinenses, manteve um diário? Mais uma menina, mais um diário cor-de-rosa, destinado a ser só um passatempo infantil!
Alice Dayrell Caldeira Brant (1880-1970), mais conhecida como Helena Morley, seu pseudônimo literário, foi a autora de um único livro, Minha vida de menina (1942). Retrato vivo e bem-humorado das raízes coloniais do Brasil, a obra nasceu da escrita inconsequente de um diário, simplesmente porque uma menina interiorana, sem nunca ter sonhado em ser escritora, um dia se deu o direito de escrever. Projetado pela tradução de Elizabeth Bishop para o inglês, o livro se tornou uma das pepitas da literatura brasileira e mundial.
E portanto, ainda que a pergunta possa continuar retumbando nas cabeças de muitos, a resposta parece já estar clara, não é mesmo?!
Referências
DICKINSON, Emily. The Complete Poems of Emily Dickinson. JOHNSON, Thomas H. (ed.). Boston: Back Bay Books, 1976.
MORLEY, Helena. Minha vida de menina. Rio de Janeiro: Cia. das Letras, 2002.
BROD, Max. Epilogue. In: KAFKA, Franz. The Trial. Translation: Wila Muir; Edwin Muir. London: Vintage Books, 2001.
CAMPOS, Maria da Conceição Aguiar. Reminiscências. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2014.
KAFKA, Franz. O desaparecido ou Amerika. Tradução: Susana Kampff Lages. 3 ed. Editora 34, 2012.
KAFKA, Franz. O castelo. Tradução: Modesto Carone. Rio de Janeiro: Cia. das Letras, 2000.
KAFKA, Franz. O processo. Tradução: Modesto Carone. Rio de Janeiro: Cia. das Letras, 1997.