Li num livro: Godard queria ser escritor, mas desistiu quando se viu obrigado a descrever um trem chegando à estação às cinco da tarde. Achava mais fácil colocar uma câmera, filmar o instante em que a locomotiva chega ao destino e depois o relógio marcando a hora das marquesas. Se Godard falou tá falado, quem sou eu para discordar do Jean Luc, mas acho ser tão difícil filmar quanto escrever: plano sequência ou picadinho? Primeiro o relógio da estação ou plano detalhe dos trilhos sob as céleres rodas do trem?
Se perdemos um escritor, ganhamos um dos mais geniais e inventivos cineastas da história. Mas como seria um romance do Godard? Acho que os livros do grande nome da Nouvelle Vague teriam características dos do Burroughs, que, se vivo, teria completado 100 anos na última quarta-feira, 5 – um mix de filosofia, antropologia, política, pintura, cinema e cultura pop. Aposto que Godard escreveria novelas policiais em que pudesse subverter as convenções do gênero. Zero, do Ignácio de Loyola Brandão, teria coisas de um livro escrito por Godard. Os do Cortázar, que rompem com os moldes clássicos, também. As citações do Borges e o distanciamento do Brecht estariam presentes.
Por sua vez, o nosso Rubem Fonseca queria ser cineasta. Numa de suas poucas entrevistas, acho que foi dada ao Geneton Moraes Neto, ele confessou a frustração. Pelo menos, o filho dele, José Henrique Fonseca, tem a profissão que o pai queria ter. Entretanto, a obra do Rubem tem características próprias da linguagem cinematográfica (a visualidade da narrativa, que se assemelha as rubricas e marcações de cena de um roteiro, os cortes abruptos, o ritmo, os diversos planos de ação), tanto é que muitos dos seus livros foram adaptados para a telona.
Luiz Fernando Carvalho, que adaptou para o cinema o Lavoura Arcaica, do Raduan Nassar, diz que “não existe cineasta melhor que o Dostoievski”. É inegável a capacidade do camisa 10 da seleção russa em produzir imagens. Um filme do Gabriel García Márquez, que ama a sétima arte, teria algo dos filmes do Fellini e do Jodorowsky, que além de cineasta é escritor. Uma fita da Clarice teria um quê da angústia existencial do Antonioni; do Lúcio Cardoso, do Bergman. Miller seria um Tinto Brass; Conrad, um Werzog; Oscar Wilde, Fassbinder.
Já o Pasolini é cineasta e escritor ou vice-versa. Dizem que foi um grande poeta – nunca li os poemas dele, escritos em friulano – dialeto de Casarsa della Delizia, no norte da Itália, pouco conhecido fora dessa região. Mas já li Teorema, que sinceramente não sei se foi tirada do filme ou se o filme é uma adaptação do livro. Algumas das obras de Pier Paolo são adaptações de obras literárias: Decameron e os Os Contos de Canterbury, do Boccaccio, e Os 120 Dias de Sodoma, do Sade.
Pasolini, inclusive, é autor da expressão Cinema de Poesia em oposição ao Cinema de Prosa – a invenção contra a imposição do fazer cinematográfico hollywoodiano (narrativo). “Tudo leva a concluir que a linguagem do cinema é fundamentalmente uma linguagem de poesia. Mas, historicamente (…) a tradição cinematográfica que se formou foi a de uma linguagem de prosa”. Só para constar.
Outra coisa: o Tarantino afirmou que vai transformar em livro o roteiro de The Hateful Eight, após o vazamento do material. Abel Ferrara faria um romance da estirpe do velho Buk. Dennis Hopper escreveria um On the Road sobre duas rodas. Buñuel seria um Campos de Carvalho, do Púcaro Búlgaro. Visconti, Balzac; Yasujiro- Ozu, Yasunari Kawabata; Scorserse, Raymond Chandler e assim por diante.
Se a letra A é a representação gráfica do fonema A e se toda representação gráfica é uma imagem, os escritores seriam cineastas? A unidade mínima de toda obra cinematográfica é a fotografia. Um filme é uma série de fotografias a 24 quadros por segundo, que nos dão a ilusão de movimento. Foto significa luz, e grafia, escrever. Portanto, fotografar é escrever com a luz. Os cineastas são escritores?