A partir de Carta ao pai, de Franz Kafka, uma reflexão sobre as diferentes linhas pensamento sobre a educação dos filhos
“É verdade que tu nunca bateste em mim de fato. Porém os gritos, o vermelhidão do teu rosto, o gesto de tirar a cinta e deixá-la pronta no espaldar da cadeira eram quase piores para mim. É como alguém que será enforcado. Se ele realmente é enforcado, morre e acaba tudo. Mas se tem de presenciar todos os preparativos para o enforcamento e só fica sabendo do indulto quando o laço pende diante de seu rosto, nesse caso ele talvez venha a sofrer a vida inteira por causa disso.”
Se você comprar a edição da L&PM Pocket de Carta ao Pai, de Franz Kafka, encontrará o trecho acima na página 44. No livro, o autor de A Metamorfose, aos 36 anos, resolve escrever uma carta a seu pai depois de receber uma reação negativa em relação ao seu noivado.
No texto, com mais de 100 páginas manuscritas em praticamente uma semana, Kafka conta toda a sua relação com o pai em tom de desabafo. O comerciante judeu Hermann Kafka é descrito pelo filho como uma figura grande, forte, indestrutível, ameaçadora, enquanto Franz, o que aparece na história e o que a conta, é medroso e assustado. Dá pra percebê-lo assim pelos episódios narrados como pela própria forma de escrever, palavras usadas e constantes justificativas e observações. A carta, que devia ser enviada ao pai, nunca chegou no seu destino. Kafka voltou atrás na última hora. De qualquer modo, é um relato profundo e riquíssimo.
Não é de hoje que se discute sobre a eficiência de palmadas no processo de educação. De um lado, existem os ‘defensores da moral e bons costumes’, a favor de que crianças apanhem um pouco para que aprendam, pois a dor física pode estimulá-las a discernir sobre o que é bom e ruim. Do outro, quem acredita rigorosamente no diálogo e que a relação pai-mãe-filho-filha deva ser horizontalizada. Enquanto um é acusado de ser raivoso, usando a violência como escudo para uma falta de habilidade em dominar a alfabetização social dos filhos, o outro é visto como frouxo.
É possível que minha opinião sobre o assunto até aqui tenha ficado evidente só pela forma como eu descrevi os dois lados, mas não tem problema, o ponto não é este. A proposta é fazer uma reflexão rápida, mas expandida, do significado de agressão (ou métodos de ensino, como defende o outro lado).
Quando se fala no assunto, em agressão infantil, imediatamente se fala na palmada. Ou seja: no ato físico, no toque, no tato. Tem até uma lei com este nome, aprovada em 2014, que estabelece o direito de crianças e adolescentes serem educados sem força física. Em nenhum momento, no entanto, se fala da educação pelo medo, aquela da mão que não encosta mas que levanta, que ameaça e aponta. O mesmo medo com que Kafka escreve as primeiras linhas do livro:

“Querido Pai, você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Como de costume, não soube responder, em parte justamente por causa do medo que tenho de você […]”
Não à toa, a carta é destinada ao pai, pois é na figura do homem que socialmente se construiu o rigor. É ele [o pai] o responsável por cobrar, pressionar e equilibrar, com firmeza, as fraquezas da mãe, além de ser a última instância da permissão, pra quem você tem que pedir por último se pode jogar videogame até meia-noite ou ir pra rua jogar bola com o vizinho.
Dessa forma, constrói-se uma relação com o pai diferente que a da mãe. Mais que familiar, uma relação de poder, tão hierárquica às vezes quanto numa empresa. A cobrança feita ao filho é a mesma sofrida pelo chefe na firma, no escritório, na obra. Alguém obediente, que respeite as regras, que tire boas notas e que tenha valores parecidos com os seus. Em Carta ao Pai, a loja de Hermann Kafka é a personificação de sua presença e a analogia pai-patrão se intensifica.
“[…] nas conversas em casa e especialmente na loja os xingamentos voavam para cima de outras pessoas ao meu redor numa tal quantidade que quando eu era menino ficava quase anestesiado e não tinha motivo algum para não remetê-los também a mim, pois as pessoas que insultava certamente não eram piores que eu, e sem dúvida você não estava muito mais insatisfeito com elas do que comigo.”
Não somente com a violência, o medo também é produto do deboche e da decepção. Basta imaginar quantas decisões e opiniões são produzidas a partir das direções apontadas pelos pais devido ao receio que sua opinião não esteja condizente com a dos familiares, correndo o risco de virar o dissabor ou a piada da família. Meu pai disse que teria orgulho de mim se eu conquistasse esse emprego, então eu preciso conquistá-lo mesmo que eu deteste essa merda. Se eu falar que meu negócio mesmo é dançar, quantas vezes eu teria que aguentar a chacota no almoço da família? E assim sucessivamente.
A consequência é uma geração de crianças crescendo com rancor da figura paterna, mantendo contato apenas por educação ou evocando conflitos causados por sentimentos como a competitividade, quando o filho procura demonstrar superioridade ao pai em qualquer tipo de discussão e experiência. Uma tentativa de se demonstrar forte e independente, mas ao mesmo tempo uma atitude desesperada de aceitação motivada pelo medo, pela vergonha e insegurança. Paulo Freire dizia que quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor. Não dava pra deixar isso de fora.