ELAS NAS LETRAS: Eurídice Gusmão, a mulher que poderia ter sido

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ELAS NAS LETRAS: Eurídice Gusmão, a mulher que poderia ter sido

Como a personagem Eurídice Gusmão, criada por Martha Batalha, retrata a invisibilidade de muitas mulheres na sociedade.

Muitas são as Eurídice Gusmão 

O livro “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, publicado por Martha Batalha em 2016, inspirou o filme “A Vida Invisível”, dirigido por Karim Aïnouz em 2019. Apesar de algumas diferenças de enredo, ambos retratam a opressão feminina dos anos 1940, no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro.

O filme adota um tom mais trágico, enquanto o livro consegue ser mais leve e otimista, embora aborde o tema com muita seriedade. Na história, duas irmãs de personalidades quase opostas, porém complementares, e por isso grandes companheiras, veem suas opções de vida serem tolhidas a todo instante por conta dos preconceitos de sua época.

A própria autora, no prefácio da obra, diz que Eurídice foi inspirada em muitas mulheres, nossas avós e antepassadas, assim como outros personagens, alguns baseados em fatos históricos e familiares.

A mulher “que poderia ter sido”

“Esta é a história de Eurídice Gusmão, a mulher que poderia ter sido”, lemos na contracapa da edição da Companhia das Letras. Poderia ter sido o quê? Uma grande arquiteta, engenheira, empresária, artista, cozinheira… E por que não foi? Certamente não por falta de interesse nem mesmo de tentativa. Vejamos esse trecho do romance:

 “Porque Eurídice, vejam vocês, era uma mulher brilhante. Se lhe dessem cálculos elaborados ela projetaria pontes. (…) um laboratório ela inventaria vacina. Se lhe dessem páginas brancas ela escreveria clássicos. Mas o que lhe deram foram cuecas sujas, que Eurídice lavou muito rápido e muito bem, sentando-se em seguida no sofá, olhando as unhas e pensando no que deveria pensar.
E foi assim que concluiu que não deveria pensar.”

Eurídice elabora um projeto atrás do outro na tentativa de se manter ocupada e de garantir algum prazer em sua tediosa vida de dona de casa e mãe de família: tenta publicar um livro de receitas, costurar para as vizinhas, e até escrever um romance.

Porém, constantemente volta ao seu tédio habitual, pois é o que se espera dela, que não tenha grandes ambições, que se acostume à mediocridade como a maior parte das pessoas. O marido, Antenor, não a compreende. Ele acredita que seu papel é apenas de provedor, e não consegue em nenhum momento ser parceiro da esposa, por inabilidade, preguiça ou covardia.

Guida: o oposto complementar 

Enquanto isso, Guida, a outra irmã, linda, vaidosa e esperta, segue um caminho diferente, porém igualmente ou ainda mais frustrante.

A princípio, foge para se casar com Marcos Godoy, rapaz de família rica por quem se apaixona. Mas, apesar de reclamar das tradições de sua família de origem e manifestar o desejo de libertação e independência, Marcos não se acostuma à pobreza pela qual acaba passando ao lado de Guida. A paixão não se sustenta e Marcos abandona a jovem esposa, grávida e desamparada.

Guida e Eurídice, assim como as outras mulheres da época, vão contornando os obstáculos como podem, adotando “táticas de guerrilha feminina” como “o combate por repetição, aquele que leva os homens a dizer sim” e “o combate por omissão (aquele que impede os homens de dizerem não)”, mentindo, omitindo, tornando-se invisíveis para não ser notadas, julgadas e condenadas.

São cerceadas não só pelos homens, mas muitas vezes pelas próprias mulheres, por meio de figuras como a professora severa e punitiva, a vizinha fofoqueira e venenosa, a sogra controladora e chantagista, todas influenciadas por uma dinâmica de poder cruel e injusta.

Crítica social com humor

Marta Batalha, foto divulgação.

O humor ácido de Martha Batalha por vezes atenua e por vezes acentua o drama das personagens, todas muito humanas.

As críticas sociais são feitas sempre dentro do contexto: a vizinha se tornou amargurada porque também teve sua personalidade podada na infância, Marcos era mimado por sua família, ou seja, os erros cometidos podem não ser de todo justificáveis, mas são, de algum modo, explicados. Além disso, a linguagem fluida da obra seduz facilmente o leitor, que só não devora as páginas se decidir prolongar a leitura para melhor apreciá-las.

Assim, “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão” nos faz refletir sobre as hipocrisias e injustiças da sociedade, ao mesmo tempo em que nos diverte com as aventuras das personagens, algumas burlescas e bem representativas de sua realidade.

A adaptação cinematográfica tem outra proposta, mas não perde em qualidade. Vale a pena buscar ambas, para adquirir uma visão crítica e comparativa.

Por fim, o mais difícil é constar que, apesar de toda evolução da sociedade e tentativa de mudança, ainda vemos muitas Eurídices por aí. E tantas outras Guidas. São mulheres que poderiam ter sido, mas que foram silenciadas.

Referência

BATALHA, Marta. A Vida Invisível de Eurídice Gusmão. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

Também indicamos:

ELAS NAS LETRAS: A voz da negritude em “Úrsula”, de Maria Firmina dos Reis

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