Júlia Lopes de Almeida marcou a literatura realista-naturalista com seu romance A Falência, que reflete o papel social da mulher na época.
Uma escritora realista-naturalista
O Realismo e o Naturalismo, correntes estéticas de origem europeia que floresceram na segunda metade do século XIX, produziram competentes representantes em nossas terras brasileiras. A primeira, claro, é sempre lembrada pelo trabalho de excelência de Machado de Assis, que fundiu suas influências românticas e realistas a um olhar muito próprio, gerando obras incontornáveis da nossa literatura como Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas. Já a segunda teve como principal representante o maranhense Aluísio Azevedo, que produziu um importante retrato das classes baixas cariocas em O cortiço e Casa de pensão. O que acontece, entretanto, quando uma mulher assume a pena nesse contexto artístico? É o que pode ser visto no romance A falência, de Júlia Lopes de Almeida, publicado em 1901.
Para começo de conversa, é preciso deixar claro que a autora não passou despercebida no panorama literário da época. Desde os 19 anos, passou a colaborar com jornais diversos, algo bastante incomum para mulheres no período.
Lançou, em 1887, com a irmã Adelina, o livro Contos Infantis, sua primeira publicação, e pouco depois o volume de contos Traços e Iluminuras, direcionado ao público adulto. Memórias de Marta, seu primeiro romance, saiu logo a seguir, no ano de 1888, momento emblemático devido à abolição da escravatura. A data é significativa para a autora, que, em seus textos na mídia impressa, defendia não apenas a libertação dos escravos, mas também outras questões polêmicas do período, como o direito da mulher ao divórcio e a instauração da república no país.
Júlia Lopes de Almeida ajudou a conceber e fundar a Academia Brasileira de Letras, mas, ironicamente, foi impedida de ter um assento na instituição por ser mulher, tendo seu lugar assumido pelo marido, o poeta português Filinto de Oliveira.
A Falência
Esses apontamentos servem para mostrar que, ainda que restrita a uma série de amarras que cerceavam os passos de uma mulher na época, Júlia Lopes de Almeida soube abrir caminhos e dar voz às suas ideias nos espaços que conquistou. Isso pode ser percebido claramente em seu romance mais conhecido, A Falência.
A narrativa gira em torno do bem-sucedido negociante de café Francisco Theodoro e sua família, composta pela mulher Camila, os quatro filhos – o primogênito Mário, a adolescente Ruth e as gêmeas Raquel e Lia –, além da sobrinha órfã Nina.
Um dos pontos mais interessantes é que todas as tramas estão, de alguma forma, atreladas à questão do dinheiro, como sugere o título, algo que talvez demonstre uma preocupação particular das mulheres do período, afastadas do controle do capital que rege diversos aspectos de suas trajetórias. Isso fica evidente ao observarmos que a relação com o dinheiro não é vivida apenas pelo patriarca, que acaba se perdendo em uma especulação financeira desastrada, mas é experimentada (e refletida) por todas as mulheres da casa.
As personagens femininas
A sobrinha Nina, por exemplo, é apaixonada pelo primo Mário, mas tem consciência de sua posição social precária, como órfã sem dote, e a dificuldade que essa posição traz ao vislumbrar um casamento com um herdeiro rico. Ao refletir sobre sua chegada àquela família, Nina revela, com amargor, sua percepção sobre essa dura realidade: “Entrara para ali como poderia ter entrado para um asilo qualquer: para ter cama e pão” (p. 85).
Já Camila, uma mulher que veio da pobreza e se acomodou nos luxos fornecidos por Francisco, sofrerá brutalmente a virada financeira da família, já que percebe a sua fragilidade não apenas por ser mulher, mas também por ter se acostumado a um padrão burguês de existência, sem que tenha desenvolvido qualquer capacidade de construir algo por suas próprias mãos.
A certo ponto do texto, o narrador capta o seu lamento sofrido: “Maldita a natureza, que a fizera, a ela, só para o amor!” (p. 190). Assim, é perceptível que o dinheiro guia todas as trajetórias apresentadas e, em maior ou menor grau, define todas elas, em lances de um determinismo típico dos romances naturalistas.
Um olhar naturalista
Da mesma forma, é naturalista o olhar para a questão da raça, que respinga aqui e ali no texto. A trama que envolve a criada Sancha e a alienada adolescente Ruth parece apontar na direção contrária ao padrão da época, já que Ruth se penaliza pelos maus tratos sofridos pela moça negra na casa das tias, encorajando-a a fugir. Trata-se, no entanto, mais do desejo de expor uma posição abolicionista e espiritualmente elevada do que de qualquer outra intenção. A visão do negro como raça inferior, tão em voga nas teorias científicas da época, pode ser facilmente percebida na situação que envolve as duas garotas:
E tudo dela repugnava a Ruth: a estupidez, a humildade, a cor, a forma, o cheiro; mas percebera que também ali havia uma alma e sofrimento, e então, com lágrimas nos olhos, perguntava a Deus, ao grande Pai misericordioso, porque a criara, a ela, tão branca e tão bonita, e fizera com o mesmo sopro aquela carne de trevas, aquele corpo feio da Sancha imunda? Que reparasse aquela injustiça tremenda e alegrasse em felicidade perfeita o coração da negra. (p. 127)
O mesmo pode ser notado nas discussões políticas entre Francisco e o capitão Rino, um apaixonado por Camila. O capitão e sua irmã Catarina representam as vozes mais progressistas do romance, e por meio de seus comentários, percebemos um eco da voz da própria autora, sabidamente alinhada a eles.
Ao tratarem das navegações de Rino pelo país, por exemplo, o capitão diz que “outra raça de grandes ideais” (p. 61) levará o país adiante, ao que Francisco questiona, minimizando a natureza brasileira: “Outra raça vinda de onde? Nascida de quem?” (p. 61). Rino responde, com um otimismo desconcertante a Francisco: “Da nossa, talvez; e das outras. As gerações que definham nos países velhos aperfeiçoam-se e revigoram-se nos novos” (p. 61).
O papel social da mulher
No entanto, é quando reflete sobre o papel social da mulher que o romance melhor explicita a diferença do ponto de vista feminino para uma obra literária do período. Camila, amarrada a um casamento de conveniência com Francisco, trai o marido com o doutor Gervásio, um vaidoso amigo da família. Embora os discursos que rondam a esposa infiel não se distanciem da crítica moral realista, evidenciando Camila como uma mulher perdida, indigna, desonesta, alguns deles trazem nuances sobre as amarras sociais que recaem, de modo injusto, sobre o sexo feminino. Após ser confrontada pelo filho, por exemplo, os pensamentos da matriarca recaem sobre o quanto a sociedade é injusta em seu tratamento para os desejos das mulheres:
Quantas vezes o marido teria beijado outras mulheres, amado outros corpos… e aí estava como dele só se dizia bem! Ele amara outras pela volúpia, pelo pecado, pelo crime; ela só se desviara para um homem, depois de lutas redentoras; e porque fora arrastada nessa fascinação, e porque não sabia esconder a sua ventura, aí estava boca do filho a dizer-lhe amarguras… (p. 54)
Conclusão: A mulher na literatura
A Falência é repleto desse tipo de reflexão. Assim, apesar do teor crítico e determinista sobre os comportamentos de Camila, é inegável que o texto avança no retrato da figura feminina perante o padrão da época.
Alguns discursos de Catarina, a irmã de Rino, vão mais longe, com a moça afirmando que prefere a solidão a um casamento que venha a lhe fazer infeliz. É o início de uma trajetória literária que modificaria, e muito, o olhar possível para os dilemas femininos.
Dessa forma, o romance A Falência, de Júlia Lopes de Almeida, é um bom representante da autora nas letras nacionais: um precursor, assim como ela, de novos caminhos para a mulher na literatura brasileira.
Bibliografia:
ALMEIDA, Júlia. A Falência. São Paulo: Via Leitura, 2018.
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