Exemplo de vida e arte, Elza construiu seu legado até o fim do mundo.
Cantou até o fim
“Feita a vontade de Elza Soares, ela cantou até o fim”: essa é a frase que encerra o comunicado oficial publicado no Instagram da cantora. É simbólico que ela tenha gravado um DVD dois dias antes de partir. Elza Soares morreu de causas naturais no dia 20 de janeiro, aos 91 anos, em sua casa no Rio de Janeiro.
Segundo Pedro Loureiro, empresário da cantora, Elza se foi tranquilamente, sem traumas e sem motivo. Simplesmente desligou. Além do DVD, a cantora também deixou um álbum gravado. Ela encantou diferentes gerações com uma voz potente e única e tocou corações com uma história intensa.
Vida difícil
Neta de escravas, Elza sempre teve uma vida complicada, até mesmo depois da fama. Foi obrigada a se casar aos 12 anos, teve um filho aos 13 e ficou viúva aos 21. Além disso, perdeu quatro filhos ao longo de sua vida.
Lá no início, em 1953, participou do programa de Ary Barroso na Rádio Tupi, o “Calouros em Desfile”. Era o sonho de muitos cantores e cantoras participar do show de calouros, que prometia ser o primeiro passo rumo ao estrelato.
Em sua primeira apresentação ao vivo, usou o que tinha disponível: uma roupa desajustada da mãe e sandálias nada confortáveis. Ary aproveitou para tirar sarro da menina que segurava a roupa para não cair, perguntando o que ela foi fazer lá e de qual planeta veio. Elza, assertiva nas respostas já na época, respondeu que veio do mesmo planeta que ele, o “planeta fome”. Mesmo depois de passar por isso, ela cantou “Lama” e, no final, o mesmo apresentador que a humilhou antes, agora declarava para todos: “Senhoras e senhores, neste exato momento nasce uma estrela.”
Mané Garrincha
Coincidentemente, Elza morreu no mesmo dia da morte de seu ex-marido Mané Garrincha, 39 anos depois. Eles tiveram uma relação conturbada, marcada por violência, críticas e amor.
Com diversos episódios de agressões físicas e traições, Elza passou por momentos difíceis, até decidir se separar, após 17 anos de casamento. Além de sofrer agressões em casa, a cantora também era muito criticada pelo público e pela imprensa, que a culpavam até pelo alcoolismo do jogador. As manchetes sobre sua morte, aliando seu falecimento ao do ex-marido, dão conta bem disso: o que a imprensa pinta é a mesma “relação perfeita” em anúncios como “Elza Soares morreu no mesmo dia que Garrincha“.
Essas questões acabaram prejudicando sua carreira naquela época. Ainda assim, anos depois do divórcio, Elza declarou que Garrincha foi o grande amor de sua vida.
A história dos dois vai virar uma série documental produzida pela Globoplay, prometendo abordar o relacionamento sob uma visão moderna, diferente do que foi tratado pela mídia no passado. “Elza & Mané – Amor por Linhas Tortas” deve estrear no serviço de streaming ainda no primeiro semestre deste ano.
Reconhecimento
Seria injusto tratar sua história somente pelo sofrimento e adversidades. Elza deixa seu legado principalmente por sua voz, que passeava por vários gêneros musicais como samba, MPB, bossa nova, soul, jazz e rock.
Foi intitulada como a “Voz do Milênio” pela BBC de Londres em 1999, considerada uma das 100 maiores vozes da música brasileira pela Rolling Stone Brasil em 2012 e ganhou o Grammy Latino com o álbum “A Mulher do Fim do Mundo” em 2016. Além de prêmios e homenagens, seu timbre único e maleável era reconhecido e aclamado mundialmente.
Com mais de 60 anos de carreira, quase 40 discos lançados e várias músicas no topo das listas de sucesso no Brasil, Elza Gomes da Conceição deixou muita história e melodia. Apesar do silenciamento da indústria fonográfica durante anos, Elza ocupa um lugar de protagonista na música brasileira e, por representar uma grande parte da população, ajudou a montar a identidade cultural do país.
Um dos últimos trabalhos, o disco “A Mulher do Fim do Mundo” (2015), dialoga com a juventude e remonta seu discurso de vida para uma roupagem mais contemporânea. E ela fez muito bem, provando que nunca ficou para trás artisticamente.
Início do Infinito
Elza Soares não é só exemplo pela sua história, mas também pela sua garra artística. Sua vida ativa lhe trouxe o reconhecimento merecido ainda durante a vida, privilégio que muitos outros gênios da arte não tiveram, pois temos o costume de entregar flores somente para as memórias póstumas.
Ela realmente se alimentava da música e não deixou faltar fôlego até o final. Do início sofrido até os últimos dias de vida, Elza preparou seu legado, que agora dá seus primeiros passos para a eternidade.
Créditos Homo Literatus
Esse texto foi escrito por Igor Furini para nossa coluna HL Sonoro. A revisão é de Evandro Konkel e a edição final de Nicole Ayres, editora-assistente do Homo Literatus.