Narrado por Graciliano Ramos, após sua saída da prisão, “Em Liberdade” nos lembra de um Brasil que gostaríamos de esquecer.
Uma distopia real
Imagine que vivemos em uma distopia: um déspota está no comando do Brasil, faz e fala o que quer sem que qualquer outro poder republicano lhe impeça. A parcela do povo que não concorda com as ideias do déspota às vezes apenas se cala. Em outras, pronuncia-se sob pena de prisão, de exclusão, de agressões e até mesmo da morte. Os que lhe rendem homenagens, ao contrário, têm tudo, inclusive as verbas e os perdões presidenciais à disposição.
O ano é 1937 e o protagonista narrador dessa obra é ninguém menos que Graciliano Ramos, recém-saído da prisão. Só isso valeria a leitura do livro de Silviano Santiago, reeditado agora pela Companhia das Letras, mas isso seria reduzi-lo a pó histórico. O autor (Silviano) simula um narrador (Graciliano) em liberdade, mas preso na história, em seu corpo e em suas incertezas. Já volto a esse ponto, mas antes quero começar a justificar o título do artigo.
Lá vem o Brasil descendo a ladeira
A canção de Moraes Moreira, de 1979, ilustra um Brasil que eternamente desfila suas promessas, que não passam de futuros não perpetrados, num giro eterno em torno do próprio eixo. A distopia vivida pelo Brasil de 1937, sob os coturnos dos militares que davam suporte ao Estado Novo getulista, assemelha-se à realidade de quando o livro foi lançado pela primeira vez. Era início da década de 1980, quando novamente coturnos dominavam a política. E, por fim, ao Brasil colônia do século XVIII, quando Cláudio Manuel da Costa, poeta inconfidente, que na história oficial cometeu suicídio, mas que na obra de Santiago é assassinado. É uma referência a Vladimir Herzog, morto pelos coturnos da ditadura civil militar brasileira (1964-1985), que montou um “palco” no qual Herzog aparece “suicidado”, enforcado por uma corda que não chega a dois palmos.
A semelhança com o presente de quem lê esta resenha é fruto tão somente do posicionamento político do leitor, diga-se. O que me interessa é que o livro de Santiago bem ilustra esse Brasil que, apesar de espernear, de tentar reinventar sua própria roda, de sair do lamaçal autoritário no qual a sua república foi engendrada, não consegue fazer download de sua nova versão. E se repete como naqueles filmes em que o tempo para e o protagonista precisa viver o mesmo dia centenas de vezes até aprender algo a respeito de si.
A lição a ser aprendida é esta: o Brasil não aprende. Por isso, o tempo se repete.
Mas vamos voltar à obra.
A prisão da liberdade
O autor propõe um Graciliano Ramos narrando logo após sua saída da prisão. Graciliano, conforme já dito, está em liberdade, mas preso na história, em seu corpo e em suas incertezas.
A “fatia de vida” (se é que podemos fatiar a vida de alguém) do narrador-personagem Graciliano fica espremida entre sua saída da prisão (com todos desdobramentos de um homem que, em liberdade, perde-se e não sabe bem como manejá-la) e, mais tarde, o início da escrita de “Memórias do cárcere”, um livro notável em que o velho Graça conta como suportou o período nas masmorras do Estado Novo.
Para o narrador, a liberdade, antes desejada, agora é aliada dos medos: da falha, do não se encontrar, do desconserto com o mundo. Ela é peso porque alia-se às muitas perguntas que Graciliano se faz a respeito da própria vida. Imaginada como um diário do período pós-prisão, a obra retrata os primeiros três meses de liberdade do autor de “Vidas secas”.
As obsessões de Santiago
Aos 85 anos, Silviano Santiago relança a obra, que faz companhia a outras duas que igualmente figuram entre a biografia e a ficção: “Viagem ao México”, de 1993, que tem Antonin Artaud como personagem, e “Machado”, de 2017, que narra os últimos meses de vida do bruxo do Cosme Velho. Em todas elas, segundo o próprio Santiago, há três obsessões suas:
“A primeira: as três vidas de artistas sempre focam os três corpos, suas presenças físicas no processo da respectiva criação artística. A segunda: os três romances focam também a força e a fraqueza do corpo humano em três situações existenciais de risco. Liberto do cárcere, o rosto irreconhecível no espelho de Graciliano. Em processo fracassado de desintoxicação, o corpo em exílio de Artaud, consumido pelas drogas. Tomado pela epilepsia, o corpo já alquebrado pela idade de Machado de Assis. Com esses elementos bem significativos, por três vezes reagi às leituras de obras literárias que não levam em consideração a vida do autor.”
Por último, o autor desmonta uma quarta obsessão, que reage contra a “tradição imposta pelo gênero biografia, que remonta aos tempos greco-latinos e se acelera, sob a forma de verbete, nos tempos da enciclopédia francesa”. Em vez disso, Santiago torce o gênero, como quem manipula o tecido do tempo, e o ressignifica, aproximando-o mais da ficção que do seu pendor documental: eis outro significado para o termo “liberdade” do título. Ou seja, a liberdade não se encontra tão somente na saída de Graciliano da prisão dos tempos getulistas, mas do próprio gênero, que se desacorrenta dos seus preceitos e navega nos mares selvagens propostos por Santiago.
Diálogo com os tempos atuais
Por último, o livro dialoga com o nosso presente. Se na obra são mencionados três casos de homens que sofreram por suas posições políticas, o vetor aponta para um Brasil que, cinquenta anos depois de um período de 21 anos de Ditadura civil-militar, ainda acredita que termos como tortura, repressão, mortes e perseguições podem fazer parte, não da história, mas de um anedotário de uma suposta esquerda esquizofrênica.
No século XVIII, a história oficial ditava que Claudio Manuel da Costa havia suicidado – fato depois desmentido, pois o poeta foi assassinado. Em 1937, um artista da estirpe de Graciliano é preso, sofre suas agruras nas masmorras do varguismo e sai em liberdade a aprender o que fazer com ela. Na década de 1970, Vladimir Herzog, à semelhança do poeta inconfidente do século XVIII, é “suicidado”. Se extrapolarmos a obra e olharmos para o Brasil que nos rodeia, um homem negro é morto a socos e pontapés em um supermercado; uma criança de colo é atropelada e arrastada por quinhentos metros, sem que a motorista sequer diminua a marcha para que o pai pudesse soltar a própria filha; uma vereadora que combate as milícias cariocas é executada e até hoje não se sabe quem encomendou sua morte.
O Brasil não é para novatos, e nunca foi.
A sombra de sermos uma república das bananas ainda nos persegue, e livros como o de Santiago podem servir como faróis para não esbarrarmos no acostamento e sairmos definitivamente da estrada.
Créditos HL
Esse texto é de João Peçanha. Ele teve revisão de Evandro Konkel e edição de Nicole Ayres, editora assistente do Homo Literatus.