Meleira, bebedor de cerveja profissional, chegou no bar do Paulo perguntando aos camaradas de balcão se uma obra de arte, para fazer jus à sua classificação, poderia ser vista de diferentes maneiras a cada vez que fosse visitada. Os três ou quatro pingaiadas que ali estavam trocaram olhares duvidosos de quem não sabe do que se trata, já que nenhum deles é dado às artes, pois a única coisa que fazem em seus dias de aposentados é beber à sua saúde, jogar no bicho e acompanhar os campeonatos de futebol transmitidos pela TV, mas, para não fazer desfeita, Santo disse que os antigos diziam que nunca se entra no mesmo rio duas vezes, talvez fosse mais ou menos disso que o recém-chegado falava.
Depois de pedir uma cerveja e dar o primeiro gole, Meleira disse que leu essa ideia num texto duma tal Ana Maria Bahiana, escrito numa coisa que seu neto chamava de blog – o velho começou, há umas duas semanas, a aprender como se mexe nessa coisa chamada internet para complementar o hábito da leitura, adquirido há uns cinco anos. Nesse tempo, leu de tudo, poesia e narrativas, mas o tipo de histórias pelo qual mais pegou gosto foram os romances policiais. Eduardo, filho do dono do bar que cursava Letras, indicou alguns autores que foram devorados por Meleira – ele achava curioso utilizar esse verbo sempre empregado quando se via diante dum prato de feijoada. Os devorados foram Agatha Christie, Conan Doyle, Raymond Chandler, Patricia Highsmith. Já tinha uma pequena prateleira de volumes comprados no sebo da dona Marta. Mas o escritor que mais fez a cabeça de Meleira foi um brasileiro. Viciou nas histórias escritas por Rubem Fonseca. Seus livros preferidos desse mineiro de Juiz de Fora eram A grande arte (“os mestres do ofício de matar com facas”), Bufo & Spallanzani (“um sujeito que morre e vive de novo, onde já se viu!?”), Agosto (“melhor suicídio dramatizado”) e O caso Morel (“difícil saber quem matou aquela mocinha”). Meleira elegeu este último como seu preferido entre os quatro. Depois de ler o texto da Bahiana, resolveu visitá-lo pela quinta vez.
Lembrava-se de que nas outras oportunidades havia se atentado para a trama em si: um artista plástico de vanguarda, encarcerado pelo misterioso assassinato de Joana, que pede ajuda a Vilela, ex-policial e escritor, para escrever um livro. À medida que lê os originais do prisioneiro, Vilela se vê espelhado na figura do possível criminoso, além de perceber que a história remete a fatos do passado de Morel, o acusado. Daí em diante, utilizando essa narrativa como guia, passa a investigar o caso.
Acendendo um Marlboro vermelho, o cigarro posicionado a tiracolo nos finos lábios rachados, Meleira disse para seus ouvintes que aí estava a grande sacada: uma história dentro da outra, espelhadas – mal sabia ele que esse tipo de construção já tinha nome, mise en abyme, em abismo, inaugurado por Andre Gide, tipo de narrativa em que um plano remete a outro, enfim, metassignificações, como dizem por aí. Ao abrir novamente seu surrado volume de O caso Morel na noite anterior, atentou-se para outra coisa. Santo, sem dizer nada, desviou seu embaçado olhar do copo de cerveja que estava pela metade, movimento que Meleira entendeu ser de interesse pela outra coisa que havia chamado sua atenção na nova leitura.
O detetive. Sherlock Holmes e Hercule Poirot pareciam imbatíveis, personagens equilibrados, mentalmente concentrados, desprovidos de crises existenciais. Bem diferentes desse rapaz, o Vilela, que abandonou a carreira de policial para se dedicar à de escritor e acabou dando com os burros n’água. As dificuldades vieram do mesmo modo. Antes, na polícia, tinha que lidar com um tipo de sadismo reprimido. Como escritor, apareceram as crises criativas, virou um sujeito amargo feito fel. Sadismo? Sim, ele gostava de bater, torturar os prisioneiros que capturava. É por isso que, como eu disse antes, lembrou Meleira, terminando sua garrafa de cerveja e espremendo a bituca no cinzeiro, ele se vê espelhado na figura do Morel, que é um sádico entre quatro paredes, batia na Joana enquanto, você sabe, faziam sexo. Que complicado, arrematou Santo.
Para retomar o raciocínio inicial, Meleira disse que, nessa leitura mais recente, viu a figura de Vilela associada ao homem comum, esse que falha em suas escolhas, erra quase sempre, sofre com os erros e acaba tendo pesadelos, perde peso, cabelos e fica sozinho, muitas vezes até acaba com a própria vida. Santo perguntou se esse homem comum seria parecido com o Arlindo, companheiro de truco que havia se suicidado há oito meses por conta de dívidas que acumulara. Exatamente, arrematou Meleira.
Em vez de Sherlock Holmes, Vilela – ou, nesse caso, o Arlindo.