Silêncio profundo; como é belo aqui, ninguém se preocupa com a minha construção, todos têm seus interesses, nenhum deles está relacionado comigo, como é que cheguei a isso?
– Franz Kafka na novela A Construção.
1. Introdução
Kafka é um autor inesgotável na multiplicidade de análises possíveis de sua obra; e este é o principal motivo de eu propor uma análise como este ensaio. Ele já foi visitado de várias formas, como: a psicologia, a filosofia, a religião, entre outras vertentes interpretativas. Grandes nomes, como Theodor Adorno e Walter Benjamin desenvolveram análises extensas sobre a obra kafkaniana; mesmo assim me proponho a também analisá-lo, não com a pretensão de escrever a melhor análise, mas com o objetivo de olhar a obra de Kafka através de três perspectivas: humor, desejo e solidão.
Aos quarenta anos e onze meses, em 1924, num sanatório em Kierling, próximo a Viena, Franz Kafka faleceu. Nesta época, ele era conhecido por narrativas esquisitas, que foram publicadas em sete finos volumes entre 1913 e o ano de sua morte. São eles: O foguista (1913), O veredicto (1913), Na colônia penal (1915), A metamorfose (1915), Um médico rural (1919) e Um artista da fome (1924). Após sua morte, seu amigo Max Brod, herdeiro de todos os materiais escritos do autor – fato outorgado pelo testamento de Kafka –, publicou vários contos e romances que o escritor austro-húngaro havia optado pela não publicação. O trato entre os dois era de que Brod deveria destruir tudo após a morte de Kafka, mas para o nosso bem, não o fez.
Ao ler vários livros que reúnem a obra de Kafka, além de outros que o analisam, pude dar meu testemunho de o quanto é importante conhecer o que este autor escreveu. O resultado de minha leitura foi um sentimento de obrigação de contribuir na divulgação da obra de Kafka, de que “precisava falar sobre isso para mais alguém”. Não tinha certeza se minhas percepções estavam corretas ou não, ou mesmo se existe esta possibilidade na obra de um autor tão amplo como Kafka. Mas não havia outro jeito, eu precisava falar/escrever sobre ele; é o que pretendo neste Percepções Kafkanianas.
Eu gostaria que ao ler este ensaio você compreenda sua própria solidão, reavalie sua noção de desejo, além de entender o que é o humor kafkaniano.
2. Humor
A questão a que me proponho é como estar diante de um enigma no qual o que precisa ser explicado não pode ser colocado em palavras, o que me impele em direção à frustração como ensaísta – quem sabe também por perceber que este trecho poderia finalizar o ensaio, em vez de abri-lo.
O problema é que ao tentar “entender” o humor de Kafka para poder escrever um ensaio, você se coloca diante da prerrogativa de não saber se realmente entendeu a graça ali contida, se era para entender, ou se o propósito era justamente este, fazer com que o leitor caminhasse numa corda bamba literária intelectual. Vale dizer, no entanto, que algumas investigações/deduções são possíveis; e me desafiam a ir em frente.
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Quando se depara com a pergunta: “mas em que consiste o humor kafkaniano?”, a resposta mais preguiçosa talvez fosse de que ele começa no negativismo. Em Conversas com Kafka, de Gustav Janouch, poeta de Praga, há a afirmação de que Kafka teria dito a seguinte frase: “Há esperança, mas não para nós”; a famosa declaração poderia ser um atestado de pessimismo – talvez até o seja –, mas a graça da literatura dele não está numa perspectiva negativa da realidade, vai além disso. Conquanto a fala revele agulhadas de humor negro, não há como declarar que o artifício usado para despertar o riso, seja este.
Uma micronarrativa chamada Pequena Fábula – publicada, no Brasil, no livro Narrativas do Espólio – serve como um exemplo compacto do humor kafkaniano. Reproduzo-a na íntegra, abaixo:
‘Ah’, disse o rato, ‘o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro.’ — ‘Você só precisa mudar de direção’, disse o gato e devorou-o.
O fato é que a tentativa de explicar o humor da Pequena Fábula é tão desmotivante quanto contar uma piada e depois explicá-la. Os contos de Kafka têm um ponto semelhante às piadas, eles funcionam como um balão que é colocado na boca de uma torneira, enchendo até chegar num ponto em que estoura e o resultado vem pra fora. A palavra que define isto é “exformação”, um volume informativo que é omitido na narrativa principal, como se crescesse num plano secundário, até que as duas convergem ao final, provocando inúmeras associações em quem ouve/lê a história. A frase inicial, curta, meramente introdutória, parece servir apenas para prender o leitor – é como se tivesse um Lettering aparecendo sobre o fundo preto: “está começando, preste atenção”. Depois vem a sentença longa, autobiográfica, onde o rato faz um panorama sobre o passado (era, dava, continuava, sentia, via), o presente (convergem, estou, fica); e o futuro (pressuposto: “… para a qual eu corro”.). O desenvolvimento central culmina na sentença final; é como no vôlei, um corte após a bola levantada na rede. A resposta/ação do gato é como a raquete atingindo a mosca, mas a grande questão é: “quem é a mosca? O rato ou o leitor?”; de alguma forma, ambos são atingidos.
Mesmo nas mais curtas narrativas, Kafka se transveste neste narrador antimoralista; e talvez este seja um dos pontos de ancoragem do humor kafkaniano – uma espécie de sujeito que conta a piada e fica sério, embora o humor bonachão deste gênero oral pareça ser um elemento mais externo, enquanto no autor aqui estudado é uma graça insciente, que deixa o leitor sem sustentação, como se entrasse numa piscina funda sem saber nadar.
Mesmo assim, ainda me sinto como um cão na coleira ao tentar “explicar” – numa tentativa medíocre, segundo me parece – o humor kafkaniano; já sabendo que não sou o primeiro a enfrentar este problema – e certamente não serei o último. No livro Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, há uma palestra de David Foster Wallace com o título: Alguns comentários sobre a graça de Kafka dos quais provavelmente não se omitiu o bastante. O discurso é um desabafo claro do autor, mas na condição de professor de literatura. Wallace expressa ser uma frustração marcante o desafio de ler Kafka com universitários, pois é quase impossível fazer com que eles achem engraçado; ou, no mínimo, percebam que a graça esteja ligada a seus contos. Após a exposição do tema, o escritor americano propõe o que seria a barreira para a compreensão do aluno.
[Na literatura kafkaniana] Não há jogos de palavras recorrentes nem acrobacias aéreas verbais, e pouco no que se refere a tiradinhas jocosas e sátiras mordazes. Não há humor baseado em funções corporais em Kafka, nem insinuações sexuais, nem tentativas estilizadas de se rebelar transgredindo as convenções. Nem comédia pastelão pynchonesca com cascas de banana ou adenoides fora de controle. Nem priapismo rothiano, metaparódia barthiana ou lamúrias à moda de Woody Allen. Não há sinal algum das viradas tum-tum-pá dos seriados cômicos modernos; tampouco crianças precoces, avós desbocados ou colegas de trabalho cinicamente insurgentes.
Ou seja, tudo aquilo a que a geração atual foi condicionada a ver como humor não se encontra na literatura de Kafka. O problema é que esta situação não é a mesma de quando alguém lê determinada sátira na obra de Shakespeare; e diante da ausência de contexto histórico, não a entende. Mas sim que a cultura de massa pautada na banalização, em grande parte, simplesmente nos constrange diante da ausência de sentido que é ler Kafka. Fomos ensinados a consumir determinado humor e não conseguimos fugir dele, como se a risada fácil fosse o único caminho viável para uma geração midiática, como a nossa.
Nesta perspectiva, um caminho válido seria a da utilização metafórica de nossa condição num conto kafkaniano do livro Um Artista da Fome e a Construção; pois quando na melhor das hipóteses acreditamos entender o humor em Kafka, agimos como o personagem-narrador de Uma Mulher Pequena, que acredita que a personagem feminina descrita por ele o aborrece. Na fala do personagem: “Ora, essa mulherzinha está muito insatisfeita comigo, sempre tem algo a censurar em mim, diante dela estou sempre errado e irrito-a a cada passo; se fosse possível dividir a vida em partes mínimas e cada partícula pudesse ser julgado em separado, certamente qualquer pedacinho da minha vida seria um aborrecimento para ela”. É como se estivéssemos diante do autor austro-húngaro a suplicar-lhe que nos deixe em paz. O humor de Kafka consegue ser seco e pegajoso ao mesmo tempo; e diante disso, após lermos as peças kafkanianas e, possivelmente, entendê-las; respondemo-las como o personagem-narrador “[ela tem que] se decidir a esquecer da minha existência, que eu por sinal nunca impus ou imporia a ela – e todo sofrimento sem dúvida acabaria.”.
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Se o estranhamento como técnica narrativa de Kafka nos prende, o humor dele nos deixa em situação delicada, pois nos tortura por ao atingir. Quem sabe aí esteja um dos pontos de desinteresse da massa na obra kafkaniana, como abrir mão do humor fácil ao final de um dia de trabalho? Ao que, eu respondo, como depois de um dia de trabalho, talvez sendo pago para pensar nas tarefas ordenadas por outros, se sucumbe à possibilidade de pensar por si mesmo? A premissa a ser rejeitada é aquela que nos foi empurrada, a de que o humor seja mero entretenimento fútil. Mais do que isso, a graça em Kafka encontra uma nova perspectiva, servindo como base para uma afirmação do que talvez seja a função do humor na literatura.
3. Desejo
Às vezes me pergunto se O Castelo não está realmente ligado ao bloqueio erótico de Kafka – um livro que se relaciona em todos os níveis com a incapacidade de atingir o clímax.
– Philip Roth, no romance O professor do desejo.
Para Freud, o desejo está ligado, intimamente, às memórias infantis, conectadas ao desejo inconsciente; não se limitando, no entanto, ao desejo sexual, mas num sentido muito mais amplo. A nós, porém, interessa a investigação citada no início deste ensaio. Em O professor do desejo, um grande romance de Philip Roth, David Kepesh, o personagem principal, narra sua história em primeira pessoa. No início do livro, ele está cursando a graduação em Artes Cênicas; e, logo após, recebe uma bolsa para cursar pós-graduação em Londres; no entanto, em sua nova residência, ele descobre outra face de sua personalidade, uma espécie de “mania sexual obsessiva”. Esta introdução é apenas uma jogada do escritor para lançar as bases de seu personagem, pois a partir daí, David resolveu voltar aos EUA para se doutorar em literatura, com o intuito de levar a vida “mais a sério”. Roth dá um pulo temporal, levando a narrativa até o personagem já formado e agora atuante como professor universitário. A partir daí, o personagem começa a dialogar consigo mesmo a respeito de sua condição, de seu anseios (desejos reprimidos?). O mais interessante é que o livro não fica dando voltas por monólogos entediantes, mas sim vai pulando de situação em situação, de forma objetiva, mas literária.
E onde se encaixa a figura de Kafka em tudo isso?
Na espinha dorsal do texto. Em convergência com sua história, o protagonista analisa sua vida a partir da negação do desejo que vê na literatura kafkaniana. Mas como poderia um texto próximo ao centenário estar ligado á modernidade com tanta força? É uma pergunta que coloca o leitor diante da atemporalidade de Kafka. As histórias do escritor austro-húngaro mostram personagens numa agonia contida, produto de uma frustração do desejo inalcançado. No livro citado por Roth, O Processo, em certo momento o narrador diz a respeito do personagem principal, Joseph K.: “A repetida menção de sua inocência se tornava já pesada para K. Parecia-lhe que em virtude de tal observação o pintor fazia do resultado favorável do processo uma condição prévia para prestar sua ajuda, a qual por isso mesmo seria certamente supérflua”. A culpa contida na frase condensada de Kafka diz respeito a alguém que está sendo julgado embora não saiba de qual crime. E este sentido de culpa liga-se ao desejo. Muitos de nós já nos sentimos imensamente culpados ao ver de forma acidental alguma pornografia na infância; ou de inúmeras outras formas. Funciona como se ter o desejo fosse uma prerrogativa social condicionada e negativada.
O crítico Theodor Adorno reconheceu humildemente que “cada frase de Kafka diz: interprete-me, mas se recusa a admiti-lo”. É uma espécie de reconhecimento do desejo, mas negação dele mesmo; funciona como se Kafka afirmasse saber que o desejo exista, mas reconheça que em vários momentos é difícil atingi-lo, ou satisfazê-lo.
Talvez o processo do qual somos culpados na literatura kafkaniana seja a nossa ansiedade em satisfazer nossos desejos. Kafka afirmou: “talvez só haja um pecado capital, a impaciência”. Como num impasse mexicano dum filme de Tarantino, ficamos sem saber o que fazer quando tentamos resolver o problema do desejo diante desta perspectiva, ou seja, embora frustrado, cômodo.
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Apesar de preso neste labirinto borgiano – metáfora válida, afinal Borges não só verteu para o espanhol, como sua obra foi profundamente influenciada por Kafka –, sinto-me na obrigação de analisar a Carta ao Pai, do escritor austro-húngaro. Este documento é provavelmente o relato mais intimista de Kafka. Nela é realizada uma autoanálise da formação pessoal do escritor. A figura do pai, onipotente, acaba por inferir uma condição de inferioridade em Kafka. O próprio autor declararia a seu pai, se a carta tivesse sido enviada: “Da sua poltrona você regia o mundo. Sua opinião era certa, todas as outras disparatadas, extravagantes (…) Você assumia o que há de enigmático em todos os tiranos, cujo direito está fundado não no pensamento, mas na própria pessoa”. É explícita a condição opressora em que Kafka foi criado; como filho mais velho, seu pai impunha que ele se tornasse um homem forte e expressivo, uma miniatura paterna; no entanto, o resultado foi inverso; o menino franzino se tornou um adulto tímido e inexpressivo.
Mesmo adulto, não conseguiu escapar desta negação do desejo; é a exemplificação máxima da obra ligada à vida do autor. Ele noivou três vezes, mas em nenhuma delas chegou ao matrimônio. Ainda em Carta ao Pai, Kafka diz a respeito disso: “… na realidade as tentativas de casamento se tornaram a tentativa de salvação mais grandiosa e mais cheia de esperança, e o fracasso depois foi com certeza de uma grandiosidade correspondente”. Ao que tudo indica, havia um sentimento de que através do casamento, o escritor finalmente cumpriria com o ideal do pai, do homem adulto, maduro, seguro de si; entretanto, sempre que se aproximava o momento, crescia o desejo de fuga. Neste quesito, ele afirma:
Não são propriamente as preocupações que provocam isso, na verdade correm juntas inúmeras preocupações, de acordo com a minha melancolia e meticulosidade, mas não são elas o decisivo; de fato elas levam a cabo, como os vermes, o trabalho no cadáver; o que me atinge de modo decisivo é uma outra coisa. É a pressão generalizada do medo, da fraqueza, do autodesprezo.
Todo este passeio em torno da restrição do desejo nos coloca diante de mais uma observação de Adorno: “A origem social do indivíduo revela-se no final como a força que o aniquila. A obra de Kafka é uma tentativa de absorvê-la”. O desenvolvimento de vida do escritor o joga nesta condição de relacionar-se de um jeito “deformado” com o desejo.
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Voltando à ficção de Kafka, diferente de Philip Roth, não acho que O Castelo seja a maior expressão do bloqueio erótico na literatura kafkaniana. Em minha concepção, isto se realiza num de seus contos mais conhecidos: Um Artista da Fome. Nesta peça, o narrador começa relatando sobre, nas últimas décadas, terem caído bastante o interesse nos espetáculos dos artistas da fome. A seguir, o leitor conhece determinado artista da fome, nunca nomeado, que ainda ganha muito dinheiro com seus obstáculos. O empresário o leva de cidade em cidade, onde o artista fica enjaulado, sendo vigiado sempre por alguém, para mostrar-se a verdade de ele estar jejuando. Fica claro a condição comercial, pois eles nunca ficam mais de quarenta dias numa cidade; proposta explicada pelo narrador, que afirma que se eles ficassem mais tempo o interesse se perderia. O artista, porém, deseja ficar mais tempo em jejum, mas seu empresário protesta. E sobre a execução da estranha arte é dito que “… durante o período de fome, nunca, em circunstância alguma, mesmo sob coação, comeria alguma coisa, por mínima que fosse: a honra da sua arte o proibia”. Desta forma, passa-se o tempo, o texto afirma: “Assim viveu muitos anos, com pequenas pausas regulares de descanso, num esplendor aparente, respeitado pelo mundo mas, apesar disso, a maior parte do tempo num estado de humor melancólico, que se tornava cada vez mais sombrio porque ninguém conseguia levá-lo a sério. Aliás, com o que poderia ser consolado? O que lhe restava desejar?”. Até que torna-se claro que em determinado momento, a atração deixa de ser apreciada pelo público; o espetáculo de assistir um homem que fica muitos dias sem comer não é mais interessante. Então o próprio artista demite o empresário e procura um circo; ele passa a viver numa jaula que fica no caminho entre o palco principal e os animais. No começo desta nova fase, ocasionalmente, o artista da fome recebe visitas, mas com o passar do tempo, ele é esquecido ali; finalmente pode jejuar pelo tempo que quiser. Um dia, alguém pergunta por que o circo mantém aquela jaula vazia. O inspetor vai até a jaula e se assusta quando vê o artista caído, minguado, na palha da cela. Eles conversam, num último diálogo, onde o artista afirma que não pode parar de jejuar. Quando indagado sobre o motivo, ele responde: “Porque eu não pude encontrar o alimento que me agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria feito nenhum alarde e me empanturrado como você e todo mundo”.
Enxergo duas interpretações possíveis a respeito deste trecho: 1) o jejuar do artista diz respeito à incapacidade de o mundo ao redor dele oferecer o que ele necessita. Metaforicamente, a comida que os outros comem não serve a ele. Esta, entretanto, parece-me a interpretação fácil, preguiçosa, que está na cara; eu proponho que a segunda seja a mais ampla; 2) o jejum do artista é a repressão de seu próprio desejo, não a fome, o sexual. A negação daquilo que todos ao seu redor consomem é a negação daquilo que ele deseja, ou seja, quando o artista quer ficar mais tempo em jejum e as pessoas ao seu redor não entendem, fica evidente a demonstração de o quanto é incompreensível à massa esta perspectiva de abstenção; é preciso estar enjaulado, oferecer um espetáculo, para que a atitude seja minimamente aceita; e ao final vem a declaração direta de que ele não tinha encontrado algo que suprisse seu desejo, pois se tivesse alcançado tal coisa, teria se empanturrado como todo mundo.
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Em Kafka, o desejo tira férias, escapa, é inalcançável. Enquanto o homem sobe escadas jurídicas, culpado de um processo que não conhece o crime, o desejo se torna culpa; mas no momento em que sua negação é exposta como arte, ele se apresenta impossível de ser suprido. A obra kafkaniana é sobre ausência, supressão, castração social, não sobre satisfação do desejo, e por isso é moderna.
4. Solidão
Talvez este seja o tema que mais me agrade abordar dentro da obra de Kafka. A solidão é um dos aspectos humanos mais “discriminados”, poderíamos dizer. Há quem tenha medo de estar só, a isolofobia; ou até mesmo quem tenha medo de ficar sozinho consigo mesmo, a autofobia. Lembro-me de ter lido há alguns anos, num jornal regional de Santa Catarina, um artigo de Ismael dos Santos, onde ele ressaltava um problema muito comum, embora pouco notado, das pessoas que não conseguem viver com o silêncio próprio; ou seja, mais-alguma-coisa-fobia.
Quando eu olho para a figura de Kafka, vejo a solidão quase como um aspecto plenamente harmonioso de sua personalidade. Antes mesmo de entrar na obra ficcional do autor é possível notar esta perspectiva já na Carta ao Pai, escrita em 1919 e revisada várias vezes, repito, certamente, o relato mais intimista de Kafka. Nele, o escritor descreve como a conturbada relação familiar desde sua infância, expondo os pontos fracos na educação que recebeu. Mais exato que a solidão, neste documento talvez seja necessário falar de “nulidade”, palavra que o dicionário define como insignificância; que fica evidente no trecho a seguir:
Seja como for, éramos tão diferentes nessa diferença tão perigosos um para o outro, que se alguém por acaso quisesse calcular antecipadamente como eu, a criança que se desenvolvia devagar, e você, o homem feito, se comportariam um com o outro, poderia supor que você simplesmente me esmagaria sob os pés e que não sobraria nada de mim.
O sentimento do homem impotente, sozinho em sua existência, continua quando Kafka afirma que certa noite, quando criança, choramingava pedindo água. Irritado com isso, seu pai ergueu-o e o levou até a varanda da casa, deixando-o lá, de camisola de dormir; ao que Kafka segue dizendo: “Anos depois eu ainda sofria com a torturante ideia de que o homem gigantesco, meu pai, a última instância, podia vir quase sem motivo me tirar da cama à noite para me levar à pawlatsche[1] e de que, portanto, eu era para ele um nada dessa espécie”. Aqui a solidão continua, somando-se à frustração do deslocamento, do não pertencer que Kafka carregou pelo resto da vida, resultando, por exemplo, em sua timidez, a qual, em certo trecho da carta, é citada como limitadora de sua interação social:
A possibilidade de intercâmbio tranquilo teve uma outra consequência na verdade muito natural: desaprendi a falar. Certamente eu não teria sido, em outro contexto, um grande orador, mas sem dúvida teria dominado a linguagem humana fluente e comum. No entanto, logo cedo você me interditou a palavra, sua ameaça: ‘Nenhuma palavra de contestação!’ e a mão erguida no ato me acompanharam desde sempre.
Este aprofundamento na vida de Kafka nos coloca diante de sua obra mais conhecida, A Metamorfose. O “problema” desta obra, sendo o autor considerado realista, é que ela praticamente impossibilita a visão alegórica. Como disse Walter Benjamim: “O mundo de Kafka se caracteriza pela mais precisa das deformações”. Se por um lado a perspectiva apresentada parece fantasiosa, por outro a narração é concisa, como a mais comum normalidade. O início avassalador de A Metamorfose – “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso” – já é por si só uma inversão, pois é como se a história começasse pelo clímax; o ponto alto da narrativa está no começo. Não é como se alguém normal, dormindo, entrasse num pesadelo, mas sim como se a pessoa acordasse ela mesmo “pesadelesca”. Modesto Carone, no livro Lições de Kafka, afirma que “…a metamorfose não está aí como um disparate, mas como uma licença poética transformada em fato”. A frieza da narração transforma o fato numa situação sombria por ser real.
O homem normal, escravo de sua própria vida, de sua condição social, de sua família, vê-se de repente suprimido numa monstruosidade incompreendida. Pode haver solidão maior que esta? Aqui o que está em voga não é a solidão de estar distante dos seus, mas sim aquela de estar perto de quem deveria se importar consigo, mas ser repelido como um monstro. Modesto Carone, no livro já citado, ainda complementa: “ele se comporta como um homem que ainda existe, mas que já não pode ser visto como sendo ele mesmo, e nessa medida é empurrado para o isolamento e a solidão (para acabar na exclusão)”.
Quando se está lendo A Metamorfose, não se dá atenção à fantasia da história – o homem acordar transformado em inseto -, mas sim a este realismo cruel, que só Kafka consegue impor. Mesmo que na primeira frase da história fique explícita a transformação num inseto, isto não “incomoda” os friccionados pela literatura, dita, realista. Noutras narrativas kafkanianas, pode se perceber o que Walter Benjamim ressalta: “Com muita frequência Kafka coloca animais no centro das suas narrativas. É possível então acompanhar esses animais por um bom tempo sem absolutamente perceber que não se trata aqui de modo algum de seres humanos. Quando pela primeira vez se bate no nome do animal, desperta-se com um choque e observa-se de uma só vez que o continente dos homens já está muito distante”.
Distante, solitário, nulo, este é o personagem kafkaniano, sentindo-se um inseto (ou mesmo sendo um); ele precisa lidar com o estar entre muitas pessoas, mas mesmo assim estar só. É como todos nós nos sentimos num momento de carência, de exaustão emocional, em que gostaríamos de ter alguém por perto, mas não temos; mesmo numa volta para casa, num transporte público, estando suprimidos por uma multidão de outros trabalhadores, sentimo-nos sozinhos, pois na verdade estamos só, como somente em nosso século poderíamos estar. Sendo quase centenário, Kafka ainda consegue ser moderno. Nossa época é o tempo da solidão, somos contemporâneos da depressão massificada, como doença comum; o que vem a calhar com a afirmação de Theodor Adorno: “Os protocolos herméticos de Kafka revelam a gênese social da esquizofrenia”.
Entretanto, movendo a cabeça em direção a outra perspectiva desta solidão kafkaniana, deparo-me com esta manifestação nas narrativas curtas de Kafka; como no pequeno conto A Partida, no Brasil publicado no volume Narrativas do Espólio, em que um narrador fala de sua situação, incompreendido por seus criados: “Ordenei que tirassem meu cavalo da estrebaria. O criado não me entendeu. Fui pessoalmente à estrebaria, selei o cavalo e montei-o. Ouvi soar à distância uma trompa, perguntei-lhe o que aquilo significava. Ele não sabia de nada e não havia escutado nada […]”. Quando o criado o vê já em cima do cavalo, pergunta onde vai, qual o seu objetivo, ao que ele responde: “Eu já disse: ‘fora-daqui’, é esse o meu objetivo”. Novamente aparece o homem que não se adapta, habitante de um mundo que não o entende, dividido por seus próprios pensamentos, por suas próprias conclusões. Como o narrador em Um cruzamento afirma: “Ele tem dentro de si as inquietações de ambos – as do gato e as do cordeiro, por mais diferentes que sejam. Por isso não está a vontade na própria pele”.
Por mais que fiquemos aqui tentando entender os vários indícios da solidão no universo de Kafka, ainda será pouco diante da grandeza deste elemento em sua obra. O sentimento de jamais se conseguir atingir o clímax produz um efeito constante de ausência. Um vazio real e humano.
Theodor Adorno afirmou: “Em Kafka a História vira inferno porque o momento da salvação foi perdido”.
É a solidão de quem disse que “há esperança, mas não para nós”.
5. Considerações finais
Que tipo de gente é essa? Será que realmente pensam ou só se arrastam sem saber para onde sobre a Terra?
O trecho é do conto O Timoneiro, do livro Narrativas do Espólio, e reflete o que é ler Kafka, a que tipo de gente queremos pertencer quando o lemos. Isto representa exatamente minha relação com o escritor, afinal eu havia passado por cima de A Metamorfose sem ver nada de diferente – apesar de tê-la lido e a ouvido em audiolivro. É quase vergonhoso reconhecer isto, porém é, acima de tudo, sincero. Às vezes, não estamos preparados para ler as obras que estão em nossas mãos. Eu havia desistido de ler Kafka, até que li dois livros que me fizeram voltar atrás, o Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, de David Foster Wallace, em que há um ensaio que já comentei neste Percepções Kafkanianas, na parte sobre humor, despertando-me para a dúvida que veio a me corroer, se eu não havia perdido alguma coisa em minha leitura anterior de Kafka. Ainda assim, permaneci teimoso, relutante, em voltar a ler alguma coisa do autor austro-húngaro. Foi então que chegou até mim o romance O Professor do Desejo, de Philip Roth, em que como já comentei, o personagem analisa sua condição através da obra de Kafka, trazendo uma perspectiva sobre o desejo. A partir dessas duas leituras, pouco a pouco, cresceu em mim o desejo de escrever este ensaio; e foi o que fiz.
Ler boa parte da literatura kafkiana foi para mim como finalmente me render a algo que estava esperando para que eu o encontrasse. Quando você está aberto a novas percepções pode ver coisas que não havia enxergado. Eu vi várias delas, mas quantas mais ainda estarão esperando para serem descobertas? Ou até, as já vistas, melhor exploradas.
Talvez o homem moderno precise ler Kafka tanto quanto o da antiguidade precisava dominar o fogo, para evoluir, para dar um passo à frente no entendimento do mundo que o cerca e como vê-lo a seu favor; ou pelo menos entender a impossibilidade desta realização.
Minha recomendação é que todos leiam Kafka como um exercício de alargamento de percepções, para ver o que está dentro de si e aceitar o que está fora. E a partir disso realizem suas próprias interpretação, pois como num vidro de banheiro embaçado pelo vapor, ainda não vimos tudo que existe ali, resta-nos esfregar com as mãos e desembaçá-lo, examinando o que há no interior desta grande obra.
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[1] Termo tcheco que designa a varanda de uma casa.
Bibliografia
CARONE, Modesto, Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
KAFKA, Franz, Carta ao Pai. São Paulo: Editora Brasiliense, 4ª Ed., 1992.
Narrativas do espólio; tradução e posfácio Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
O Processo; tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
Um artista da fome e A construção; tradução e posfácio Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
JANOUCH, Gustav, Conversas com Kafka. São Paulo: Novo Século, 2008.
ROTH, Philip, O professor do desejo; tradução Jorio Dauster. – 1ª Ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
WALLACE, Davi Foster, Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.