Em Por que ler os clássicos, Italo Calvino nos mostra que um ensaio sobre literatura vai além de abordar estilos literários e que um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer
Imagine um professor de literatura sem cara de professor, dono de uma bagagem erudita e que consegue torná-la acessível para qualquer leitor, independente de seu repertório. É mais fácil percorrermos um dos muitos livros descritos por ele em vez de buscar uma resposta à pergunta “o quanto ele sabe e o quanto ele escreveu?”. Tal pessoa existiu, ou muito perto disso: Por que ler os Clássicos é uma coletânea de críticas literárias de Italo Calvino, mais conhecido por sua magnífica ficção As Cidades Invisíveis.
O próprio Calvino tenta responder à frase-título da obra em um ensaio que antecede a coletânea, no qual se lê “um clássico é uma obra que provoca incessantemente, uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente a repele para longe” (p.12). É uma explicação fácil de adaptar à nossa realidade pelas infinitas discussões geradas por Dom Casmurro ou Grande Sertão:Veredas, hoje pilares da nossa literatura.
Se explorar uma obra hoje consagrada não bastar, tudo bem, Calvino não esqueceu de outras abordagens. Ele diz sentir vontade de brigar com Jean-Jacques Rousseau e contradizê-lo por causa de seus escritos mesmo quando eles o agradam, e reconhece um certo peso de uma antipatia pessoal ao se moldar uma biblioteca, pois “o ‘seu’ clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele”(p.13). Calvino diz que devemos montar nossas bibliotecas pessoais com espaço para os clássicos e para aqueles que pretendemos ler, e também abrir espaços para surpresas – e dá uma resposta simples à questão de abertura.
Após o ensaio de introdução começa a coletânea, e qualquer capítulo seu pode servir como aula. Ao escrever sobre a Odisseia, de Homero, Calvino questiona quantas odisseias existem dentro da original, suposto enredo que contém múltiplas histórias dentro de si, atingindo planos de maior repercussão geral ou individual, pois não é apenas a saga de um homem ou de um povo narrada na referida epopeia.
O ritmo veloz do Cândido, de Voltaire, nos leva por um carrossel desastroso, tanto pelas situações individuais dos personagens que se juntam (e até dos que aparecem apenas para roubar) ao protagonista e seu minguado grupo, quanto por um terremoto e grandes conflitos, inspirados em acontecimentos reais e retratados à maneira de Voltaire em seu conto filosófico que impressiona não por este tom mas pelo ritmo, segundo Calvino. Duas páginas bastam para mudanças bruscas nos comportamentos dos personagens, até no mais manso, enquanto a “voz da ‘razão’ no Candide é toda utópica” (p.114).
Detalhes simples feito um barômetro; o quanto um escritor se posicionou como alguém que escreve às massas de sua época e produziu material resistente à ação do tempo, em contraste a noções que podemos ter hoje graças a excessos mercadológicos; a ciência de Galileu,os versos de Ariosto, o que Stendhal fez para criar personagens marcantes feito Gina Sanseverina; os modos literários dos setecentos e demais períodos; nada escapou na redação deste livro.
Algumas das obras analisadas por Italo Calvino são clássicos desconhecidos para a nossa época, e alguns talvez ainda estejam restritos aos seus períodos e locais de publicação. Apesar disso é possível conhecer um pouco deles e também de suas culturas, pois cada capítulo aborda um livro dentro de seu contexto e o quanto este pode ter sido retratado direta ou indiretamente, assimilando a linguagem dos conterrâneos ou mesclando uma realidade a puras ficções. É como se um ensaio sobre literatura não fosse apenas um ensaio sobre estilos, e talvez por isso as obras que Calvino analisou tenham sobrevivido até se tornarem clássicas.