E, continuando com os meus depoimentos de vida, eis que hoje trago um relato bem curtinho para vocês, mas sem deixar de ser o início de uma longa reflexão sobre o ato de ler e sobre a figura do livro.
Certa tarde do ano letivo, estava eu na sala de aula quando, como sempre, quando chega perto da hora de bater para o recreio eu lembro aos meus alunos:
– Vai bater, peguem tudo que vocês precisam, pois depois ninguém voltará para a sala durante o recreio!
A menina %$@%&, uma aluna bem tímida, chega até mim e pergunta, com voz baixíssima:
– Posso pegar um livro da caixinha para eu ler no recreio?
Obviamente que eu deixe. Super feliz. Uma criança de nove anos, na flor da infância, querendo ler, por iniciativa própria?! Quanta alegria. Nesse instante, meu lado cego e egoísta e, totalmente ‘pavão’ grita mais alto. Fui para a sala dos professores toda exibida, dizendo às demais colegas que eu tinha conseguido ‘tocar’, através dos meus ensinamentos e do meu exemplo, uma aluna e que ela saíra para o recreio com um livro embaixo do braço. Certamente, recebi elogios das colegas. E, para a minha mais alegre e sonhadora surpresa, aquele pedido continuou se repetindo por semanas. Até que num certo dia chuvoso, como ninguém podia sair da sala, o recreio foi dentro da aula mesmo (bendito dia de chuva – serviu pra lavar meu exibimento e jogar água em meus sonhos coloridos), %$@%& pediu um livro para mim, como sempre. Vocês devem estar se perguntando, tá e daí, qual a novidade, então? Eu perguntei a ela: “Mas hoje você pode ficar jogando com as suas outras colegas de aula. Não precisa ficar lendo (imaginei que ela não gostasse de ficar no pátio da escola, em dia ensolarado, correndo e pulando, por isso, preferia ler). Você não quer jogar?”
– Não. Eu quero ler. – foi a resposta da menina.
Olhei em torno da sala e vi que todos estavam enturmados e jogando. Menos ela. Foi nesse instante que percebi os olhos tristes da minha aluna. Ninguém a chamara para jogar. Nem precisou eu ir num dia de sol ao pátio da escola para verificar e comprovar o que eu percebi naquele instante. Ela lia porque ninguém queria brincar com ela. O livro para aquela criaturinha pequena era uma tábua de salvação. O único companheiro em seu recreio infantil.
E eu? Eu toda exibida me achando a dona da cocada preta! Que tinha, com o meu exemplo de leitora, conquistado uma nova adepta da leitura. Quanta ‘burrice’!
Como termina essa historinha verdadeira? A menina foi chamada ao SOE para averiguar o tempo… Desde quando aquela rejeição estava acontecendo. E pasmem… Há mais de dois anos! A guria quieta das turmas, que todas as profes elogiavam e que passou a “gostar” de ler comigo nada mais era do que uma aluna rejeitada. No início, ela apenas se isolava, depois começou a ler. Percebeu que o livro poderia salvá-la das rejeições. Na cabecinha dela, não eram as outras colegas que a desprezava, ela é que preferia ficar isolada, num cantinho do pátio… Lendo.
Demorou muito tempo para a aluna começar a se misturar com os outros colegas. Ela sempre fora a esquisita. A que gostava de ler nos cantos do pátio. Demorou muito tempo para ‘as coisas’ começarem a se tornar mais leves para aquela aluna. Primeiramente, tiveram que se mostrar bem ‘duras’ e reais para a sua professora (eu).
Até onde o livro é importante? Até quando o livro dá prazer? Como e quando um livro poderá ser sinônimo de salvação? Livro: um recreio ou uma prisão?
Luz e livros a todos.