Entre o todo, as partes – Comentários sobre Entre amigos, de Amós Oz

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Ao optar pelo “nós” narrativo para tratar dilemas individuais, o que está em jogo é o peso do plural sobre o individual, que explicita os dilemas daquelas pessoas no que diz respeito à vida no kibutz e, consequentemente, às suas vidas pessoais, escolhas, relacionamentos e dramas. 

Amos Oz
Amós Oz

Lançado recentemente no Brasil, Entre amigos retoma um tema recorrente na obra do autor israelense Amós Oz: a vida em um kibutz. No entanto, antes dos comentários que pretendo fazer sobre o livro, digo que a leitura independe de um conhecimento prévio sobre o conflito árabe-israelense ou até mesmo sobre o que é um kibutz. Se interessar, no entanto, uma rápida pesquisa na internet esclarece a origem e as razões de ser dos kibutzim. Ao que interessa neste comentário, os kibutzim se propõem a um estilo de vida eminentemente coletivo, objetivando (ao menos a priori) a realização de uma sociedade igualitária.

Composto por oito histórias, Entre Amigos é um livro que fala sobre o dia a dia no kibutz ikhat em meados da década de 1950. Para além do aspecto histórico, o primeiro e mais importante ponto que destaco desse trabalho é o fato dele transitar em os gêneros conto e romance. Adianto que tal divisão por gêneros é espinhosa, pois, para além de debates acadêmicos ou mercadológicos¹, algumas razões que dificultam emplacá-la indiscutível são livros como A visita cruel do tempo, de Jennifer Egan, ou O livro de Praga – Narrativas de amor e arte, de Sérgio Sant’Anna, que, cada qual à sua maneira, questionam a diferenciação esquemática entre gêneros ao lançarem mão de artifícios comuns tanto aos contos como aos romances em suas estruturas.

Fazendo coro com os livros citados acima, muito embora cada uma das histórias de Entre Amigos possua seus personagens principais e os conflitos que engendram um arco dramático próprio, essas histórias estão interligadas não apenas pela mesma contextualização (posto que todas se passam no kibutz ikhat), mas também pelo trânsito de personagens entre elas. Nessa armação, um personagem secundário num texto certamente ressurgirá como central em outro e reaparecerá an passant ainda pela obra.

A variedade de perspectivas para um mesmo personagem expõe a complexidade de figuras aparentemente simples, como um jardineiro, um eletricista ou um estudante, pois, mediante a situação na qual se encontram, deixam transparecer diferentes facetas de suas personalidades. Por exemplo, se como mero observador de situações alheias o personagem Roni Shindlin é um piadista, quando imbuído nos dramas de sua vida particular (no texto Um menininho), temos acesso a características menos jocosas e muito mais violentas desse personagem.

Esse primeiro elemento, apesar de fundamental à obra, serve apenas como indício ao que Amóz Os se propôs com Entre Amigos. Ainda a partir do exemplo de Roni Shindlin, repara-se que existe uma diferenciação (conflitiva) entre o comportamento coletivo e o individual, explicitando o óbvio: toda coletividade é composta por uma série de indivíduos – e esses não são homogêneos, tampouco se amalgamam a ponto de perderem suas idiossincrasias. Portanto, num contexto em que as relações se propõem francas, igualitárias e, sobretudo, harmoniosas, outros sentimentos emergem dessa convivência, tal como é ponderado após um acesso de raiva de Roni Shindlin no já citado Um menininho:

“Em seu íntimo, Roni acreditava que a crueldade às vezes se disfarça entre nós de honorabilidade e de apego a princípios e sabia que ninguém é totalmente inume a ela. Nem ele mesmo.”

Dando continuidade à investigação a partir do indício apontado acima, na qual é explicitada que toda coletividade é construída por uma série de indivíduos que, vez ou outra, entrarão em conflito, faz-se importante considerar que a indefinição entre gêneros literários a que se propõe o livro gera uma tensão. Temos nas mãos um romance que é também uma série de contos, ou seja, de alguma forma, temos nas mãos uma espécie de embate. Nessa trilha, encontra-se outra característica importante (e que julgo ser o maior mérito) desse novo trabalho de Oz: a tensão que tem origem na própria (in)definição do livro extrapola meramente a discussão formal para refletir como um traço comum a todos os personagens e, acima de tudo, o tema que marca Entre Amigos, isto é, o constante conflito entre o coletivo e o individual, as exigências da vida comunitária versus as demandas particulares.

No texto Dir Adjlun, travamos contato com o jovem Iotam Kalish e sua vontade de evadir-se por um tempo do kibutz em decorrência de uma sensação de sufocamento que ele não consegue explicar, mas que é amplamente metaforizada pelo calor e pela secura do clima que marca o texto. Entretanto, sua saída deve ser aprovada pela assembleia do kibutz, que se mostra quase unanimemente contrária, muito embora a mãe do personagem se esforce em articulações para viabilizar o desejo do filho.

Ao construir o painel que compõem o kibutz ikhat, percebe-se que, tal como em Dir Adjlun, em todas as histórias o conflito central se constrói na tensão entre o coletivo e o individual, o debate (embate) que os personagens estabelecem entre os princípios que regem o kibutz e seus desejos de individualidade. Os exemplos são muitos e, apenas para ilustrar, destaco um trecho de À noite, história na qual Ioav Karni, primeiro filho de ikhat e atual figura relevante desse kibutz, ao fazer a ronda noturna, se debruça sobre o fato de viver culpado ao lado de sua esposa devido ao impasse que vivem:

“Dana não gostava da vida no kibutz e sonhava com uma vida individual, particular. […] Mas Ioav era um homem de princípios, sempre lutando para corrigir e melhorar a vida no kibutz, e não estava disposto nem a ouvir falar em abandono”.

Mediante ao exposto, sinalizo outra escolha formal fundamental à construção temática do livro: o narrador na primeira pessoa do plural para todas as histórias, um “nós” onipresente que, ao mesmo tempo em que reforça o coletivo, explicita a dimensão pessoal dos indivíduos que o compõe justamente ao julgá-los – acentuando o conflito inevitável da tentativa (em si frustrada) de suprimir os indivíduos em nome de um coletivo. Ao optar pelo “nós” narrativo para tratar dilemas individuais, o que está em jogo é o peso do plural sobre o individual, que explicita os dilemas daquelas pessoas no que diz respeito à vida no kibutz e, consequentemente, às suas vidas pessoais, escolhas, relacionamentos e dramas. É justamente na imposição forçosa do “nós” que surge o “eu”.

Deste modo, longe de idealizações ou panfletarismos políticos, Entre Amigos trabalha conflitos e dramas próprios do ser humano. Em O rei da Noruega, por exemplo, acompanhamos o cotidiano do jardineiro Tzvi Provizor, um solteirão na faixa dos 50 anos que, apesar da proximidade com Luna Blank, uma professora da terceira série e exímia desenhista, não consegue deixar-se tocar, tampouco entabular um relacionamento que ultrapasse o limite de conversas ao fim de tardes. Já em Duas mulheres, acompanhamos a relação estabelecida entre Osnat e Ariela por meio de cartas, após Boaz abandonar a primeira para morar com a segunda. Outro exemplo é o texto que fecha o livro, Esperanto, no qual o velho fumante inveterado e vítima de um enfisema Martin Vanderberg resolve dar aulas de esperando na tentativa de restabelecer a ideia de união que guiou originalmente o kibutz.

Um problema que identifico nessa estrutura formal do livro é a repetição. Como se não confiasse na memória do leitor, Amós Oz reitera os principais trejeitos e expressões que caracterizam seus personagens sempre que surgem. Muito embora a recorrência de caracterizações sirvam ao propósito de contrapô-las a outras facetas que surgirão dos personagens, não há necessidade de sermos rememorados insistentemente que Roni Shindlin é piadista e fofoqueiro ou que Ionav Karni é correto.

Entre amigosPor fim, apesar de breve, Entre Amigos é um grande livro, sobretudo por conseguir um efeito narrativo eficaz e delicado a partir de recursos formais. Ao contrário de um mero exibicionismo estilístico, esses recursos servem às histórias que contam, demonstrando o domínio do fazer literário que Amós Oz conquistou ao longo de 50 anos de carreira e dezenas de livros.

Entre Amigos
Amós Oz
Tradução de Paulo Geiger
Cia. das Letras
136 Páginas
2014

1 – Muito embora não esteja relacionado diretamente ao conteúdo desta resenha, sugiro a leitura da entrevista “O futuro do conto no Brasil e o sucesso do selo Formas Breves – Entrevista com Carlos Henrique Schroeder” publicada no Homo Literatus.

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