Entrevista com Hamlet: “só andava com o Horácio e não quis pegar a Ofélia”

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Por ocasião do relançamento do clássico shakespeariano pela Penguim-Companhia, Hamlet foi convidado a vir ao Brasil. Nos primeiros dias, com a agenda cheia, dividindo seu tempo entre Rio de Janeiro e São Paulo, não consegui falar com ele (ouvi apenas boatos de que o príncipe dinamarquês estava virado em um mulato de tanto sol que pegou em Copacabana). Tentei várias vezes contato com assessoria de imprensa dinarmaquesa, mas minha falta de fluência no inglês, imaginem só no dinarmaquês, impediu que eu conseguisse lhufas.

Eu tinha desistido de entrevistar o nobre quando topei com ele em uma praia de Florianópolis, muito apreciada pelo público gay, a Praia dos Ingleses. Hamlet estava de camisa verde e amarela, um bermudão quase tão escandaloso quanto o óculos que usava, de lentes coloridas, e com uma caipirinha na mão. Pediu que eu falasse baixo assim que percebeu ter sido identificado. Aceitei, mediante a chantagem de que teria de conceder uma exclusiva para mim ou eu sairia gritando e fazendo um escândalo que só brasileiro sabe fazer, denunciando a presença da celebridade ali (mal sabia ele que se eu fizesse isso, pouca gente aqui no país se daria conta de quem eu estava falando).

Ele aceitou, usando um inglês monossilábico.

Na empolgação do momento, arrastei Hamlet até o Casa Café Bar e Restaurante (só faltou ser funerária também) e sentamos com os pés na areia, em pleno finzinho de inverno aqui no Sul. Eu dizendo que ainda não estava calor de praia, e o príncipe soando como garrafa tirada do congelador.

“Então, o que queres saber?”, o gringo lascou de primeira. Educação europeia é o cacete.

Como eu não tinha vindo preparado, afinal havia perdido a esperança de conseguir a entrevista, tentei lembrar o que Shakespeare tinha escrito e perguntei o que passou pela minha cabeça, “você costumava passear com as guardas sempre à noite?”

“Lestes a peça?”

“Claro, umas três vezes. Tá achando o quê?”

“Penso que não, ou saberias que só depois de meu pai ter aparecido é que fui até a muralha.”

Ignorei a provocação e perguntei, “mas e aquele Horácio, hein? Sei lá, meu velho, só que na minha terra o relacionamento de vocês, como posso dizer…”

“Estás insinuando algo?”

“Espera aí, vou pedir uma gelada.”

“Uma caipirinha, por favor. Em sua conta.”

Dinarmaquês safado. Ok, eu queria a entrevista. O garçom logo veio, anotou o pedido e num bate e volta na cozinha da bodega, voltou com a minha gelada e a caipirinha do entrevistado.

“Aaaah, a melhor coisa do Brasil”, Hamlet disse após um gole. “Onde estávamos mesmo?”

“Paramos no Horácio, seu amigo que te fazia ver coisas do outro mundo.”

“Como disse?”

“É, ele não tava com você quando inventou aquela paranoia do fantasma do seu pai?”

“És profissional mesmo? Aliás, em qual jornal irá sair esta entrevista? Pois me pareces muito amador.”

“É pra um site, na verdade. Você sabe o que é? Não é do seu tempo.”

Hamlet tirou um iPhone 6 do bolso e falou que diferente de mim, ele nasceu em um país de primeiro mundo. Neste momento, o Whats dele ressoou com uma mensagem. O príncipe me ignorou por completo, digitou um textão em resposta e então se voltou pra mim e afirmou que não tinha muito tempo.

Ou pelo menos, foi o que entendi. O inglês dele era meio arcaico, e o meu jovem demais (tipo o  de criança que tá começando a falar).

“Muito bem, vou avançar nas perguntas”, prometi.

“Já era hora”, ele disse e pediu mais uma caipirinha, anotada em minha comanda.

“Ofélia.”

“O que tem ela?”

“Você não se sente –”

“Ah, meu senhor. Vais me perguntar por que não peguei ela também?”

“Claro que não, meu príncipe. Já manjei suas preferências.”

“Estás insinuando de novo.”

“Só queria saber se não se sente culpado de ela ter se matado por sua causa?”

“Me recuso a responder essa.”

“Passa?”

“Passo. Próxima.”

“Assim, não sou daqueles que gostam de provocar o entrevistado, mas tem uma pergunta que preciso fazer.”

“Jornalistas…”

“Olha, me parece que você não era filho daquele rei não.”

“Por que dizes esta afronta contra mim, calhorda?”

“Calhorda é algum tempero dinamarquês? Parece bom. Já explico. É que pelo que dizem, o rei que morreu era sangue nos olhos, pica grossa, tinha currado os noruegueses e coisa e tal… Já você, meu amigo, não queria comer a vingança em prato frio, tava mais pra congelado. É a peça mais longa do Shakespeare. Parece que nunca mais você vai acabar com seu tio.”

“Sou ardiloso, rapaz. Onde quer chegar com isso?”

“No final das contas, será que você não é mesmo filho do seu tio?”

Hamlet deu um soco em cima da mesa. “Pensei que íamos falar de literatura, de arte, nesta entrevista? Mas tu me fazes perder a paciência”, disse e xingou algumas coisas que não entendi, porém só podiam ser elogios à minha mãe.

Falei para ele que se a entrevista fosse sobre literatura, ninguém no Brasil ia ler mesmo. Por isso, a gente da “área cultural” apelava para este lado mais revista de fofocas. Acho que Hamlet não engoliu, pois falou que estava indo embora de qualquer forma.

Foi nessa hora que joguei sujo. Prometi que se respondesse minha última pergunta, apenas com um sim ou não, levava ele até uns lugares porretas na night da Praia dos Ingleses. Acho que Hamlet entendeu o que eu quis dizer.

“Qual é a última pergunta?”

“Olha, depois de tudo que falei e você respondeu, há algo de profundo interesse no Brasil contemporâneo e que pode popularizar sua figura aqui no país.”

“E o que seria?”

“Você só andava com o Horácio e não quis pegar a Ofélia. Cá pra nós, você era homossexual ou não?”

Hamlet deu um sorrisinho sem vergonha e disse, “ser ou não ser: eis a questão.”

 

Referência:

SHAKESPEARE, William. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. — 1a ed. — São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2015.

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