Entrevista com Jeferson Tenório: literatura, ensino e negritude

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Autor radicado no Rio Grande do Sul desde a infância, Jeferson Tenório fala sobre assuntos importantes como ensino de literatura, seu desenvolvimento como escritor, entre outros.

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Jeferson Tenório nasceu no Rio de Janeiro, em 1977. Radicado em Porto Alegre, é mestre em letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Leciona em escolas de Porto Alegre. Premiado no concurso Paulo Leminski em 2009, com o conto Cavalos não choram e no concurso Palco Habitasul, com o conto A beleza e a tristeza, adaptado para o teatro em 2007 e 2008. É autor do romance O beijo na parede. Vencedor do Prêmio AGES (associação do gaúcha dos escritores), eleito o livro do ano de 2013.

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Como foram os teus primeiros contatos com a Literatura e como ela te afetou ao ponto de te tornar professor e escritor?

A pergunta é boa porque de fato a literatura é o elo entre o “eu” professor e o “eu” escritor.  No entanto, minha relação com a literatura se deu de forma tardia. Li muito pouco durante minha adolescência. Por outro lado, eu sentia desde sempre uma grande necessidade de narrar. Tanto que aos 18 anos escrevi um romance, muito ruim, diga-se de passagem, com 200 páginas escritas a mão. Nunca tive coragem de mostrar o livro para alguém. Quando ingressei no curso de letras sofri uma retração quanto a essa minha vontade escrever. Ler Guimarães Rosa e Machado foi algo que paralisou minha escrita. Então entrei numa espécie de “Em busca do tempo perdido” e passei os dois primeiros anos de faculdade comprando livros com muita dificuldade e lendo tudo que me caia nas mãos. Entrei num tal frenesi que cheguei a achar que a literatura era coisa mais importante do mundo. Mais tarde, as leituras acabaram refletindo na minha vontade de discutir os textos, o que acabou me levando para a sala de aula. Creio que não conseguiria, pelo menos não agora, viver apenas para a escrita. A sala de aula é um grande laboratório de reflexão e de criação literária, justamente porque tu lida com pessoas de todos os tipos, cada uma carregando um história diferente. Um olhar diferente.

Tu disse que “a sala de aula é um grande laboratório de reflexão e de criação literária”. O que mais a sala de aula pode fazer pela literatura e vice-versa?

Olha, a sala de aula é um microcosmo. Ali se realiza uma troca permanente de experiências. As tensões, os conflitos e a convivência te forçam também a resolver ou mediar problemas a todo o momento. Escrevi um conto chamado “Ensaio sobre o fim das coisas” em que o personagem principal está prestes a se aposentar e faz um uma reflexão dura e honesta sobre os trinta anos em sala de aula.

E como surge a passagem do professor para o escritor? O curso de Letras te ajudou a trilhar esse caminho ou não?

Acho que me tornei professor porque certamente não conseguiria ser outra coisa. No entanto, escrever, no inicio, foi muito mais intuitivo. Escrevia sem a consciência da técnica. Minha formação em letras contribuiu no sentido de aumentar meu repertório, o que me permitia compreender melhor a construção estética de determinados autores. Assim como o acesso à crítica e às teorias literárias também me fizeram enxergar melhor aquilo que eu escrevia. Mas claro, isso se deu de forma bastante lenta e gradual.

Como todo esse processo te levou a O beijo na parede, teu primeiro romance? E como foi a experiência num projeto como esse?

Foi um processo penoso porque errei muito até chegar nele. Na verdade o Beijo se originou de um conto meu chamado Cavalos não choram e que acabou sendo premiado no concurso Paulo Leminski.  O conto é relativamente grande. Então senti a necessidade de prolongar aquela história. Nesse processo cometi alguns equívocos: linguagem erudita demais, personagens rasos, incoerências. Foi um projeto que custou 4 anos. E também havia  o fato de eu não saber se se seria publicado. Então eu escrevia para mim. Todos os dias eu tinha de acreditar que aquelas palavras na tela do computador tinham algum valor.  Lembro de em alguns momentos, durante a escrita,chegar a uma espécie de exaustão. Havia uma grande preocupação minha em não desperdiçar palavras. Eu escrevia como quem faz um poema, prestando a atenção em cada palavra, em cada verbo, em cada adjetivo. Creio que o personagem João é o resultado disso, em que ele, apesar da pouco idade, faz reflexões muito profundas, mas filtradas pelo olhar pueril. Chegar nisso é que foi difícil. Um professor de literatura me disse uma vez que eu havia feito um clássico. Acho um exagero. O que penso é que os personagens do livro ganharam uma autonomia e uma força que eu realmente não esperava.

Tu disseste que o processo de produção de O beijo na parede foi penoso. Gostaria de saber o que aprendeste com  os quatro anos de escrita desse romance e quais conselhos daria a um escritor iniciante?

Olha, também me considero um escritor iniciante e também não sou bom em conselhos (risos). O que posso dizer é um pouco sobre a minha experiência com o ato de escrever, que pode servir só para mim. O Beijo é um romance de formação. Por isso na medida em que o personagem o João ia amadurecendo eu ia me formando como escritor.  Foi uma ajuda mútua. Passar tanto tempo num projeto e sem saber se ele ia dar certo me fez aprender uma coisa importante: ter paciência, justamente porque foi o momento da experimentação da voz narrativa. Nas primeiras versões testei várias formas de narrar até encontrar aquela que me deixasse num certo conforto para continuar. Daí por diante meu trabalho no Beijo foi o de artesão mesmo: dosar as frases de efeito, limpar a frase de adjetivos ou advérbios desnecessários, construir uma estrutura frasal sem malabarismos sintáticos. Mas veja, era muito mais intuitivo. Minha escrita vinha mais da experiência como leitor do que de uma “técnica”. Mas passado tanto tempo depois de iniciar o livro sinto que cometo menos equívocos, o que não significa que está mais fácil escrever, pelo contrário, talvez eu tenha um pouco mais de consciência estética. Percebo isso produzindo meu segundo romance (com o título provisório de “Estela sem Deus”) Vejo os erros com mais rapidez, no entanto é mais difícil encontrar as palavras que quero.

Uma pergunta que não pode faltar: como é ser um escritor no Brasil? Tu alimenta alguma possibilidade de viver apenas como escritor em algum momento da vida?

Conheço poucas pessoas que conseguem viver de literatura no Brasil. É algo raro. Ano passado a Folha de S. fez uma matéria sobre como vivem os escritores. Meio assustador coisa, porque tinha gente consagrada ali e tal, publicada por grandes editores e que mesmo assim encontram dificuldade em viver da escrita. Aí pensei: o que sobra então para os autores de editoras pequenas ou independentes?  Meu maior desejo é, claro, ser lido pelas  pessoas. Ganhar grana com isso é outra história. Por outro, tenho consciência de que é necessário lutar por uma profissionalização dos escritores porque essa coisa de dar palestra, oficinas ou curso de graça também é complicado. Agora, viver só da escrita não é uma coisa que almejo. Dar aula é um estimulo à escrita como disse anteriormente.

O que tu diria da tua posição de escritor e negro sobre racismo e negritude na Literatura e na sociedade brasileiras de hoje (ou historicamente, se preferir)?

Historicamente os negros têm sido alijados em relação ao acesso de bens culturais. Esta situação acontece sistematicamente e isso certamente se reflete no ambiente literário. Dentro da história literária há poucos escritores negros. Alguns como Machado de Assis e o Mario de Andrade foram embranquecidos pela história. Atualmente tu não consegue encher os dedos da mão com autores negros, romancistas então…tu pensa num Paulo Lins, tu pensa num Nei Lopes, num Joel Rufino e a coisa para por aí, na poesia entra aí o Ricardo Aleixo, o Ronald Augusto, Oliveira Silveira…mas agora quando olhamos para escritoras negras então a coisa é pior. Mesmo com a Carolina Maria de Jesus sendo traduzida e dezenas de países, o seu Quarto de Despejo ainda é pouco lido por aqui. Os livros por exemplo da escritora Conceição Evaristo são difíceis de achar em livrarias, então me parece que há uma resistência do mercado editorial em absorver autores negros e suas temáticas. Só para tu ter uma ideia, quando fiz meu mestrado em literatura luso-africanas discuti o niilismo nietzshiano na obra do Mia Couto. Eu, particularmente acho que o Mia discute bem as questões raciais. Acontece que durante a pesquisa, percebi que algumas fortunas críticas faziam interpretações que me pareceram bastante nocivas, pois algumas delas levantavam essa ideia de que as raças, do ponto de vista biológico, não existem (o que de fato é verdadeiro) e, que, portanto não haveria necessidade de falarmos em raças, mas em seres humanos. O grande problema desse discurso reside justamente em camuflar o racismo com essa pretensa “humanidade”. Me parece que, às vezes, há uma grande pressa de um determinado setor em alcançar o “universal”. Ora, não se chega ao universal sem antes passar pelo particular. Do ponto de vista biológico as raças não existem, mas isso não quer dizer que o racismo não deva ser combatido. Por outro lado, há sempre uma cobrança nos autores negros em abordarem temas como a negritude em suas obras. Claro que tratar disso é quase inevitável. No meu caso, tratar de questões que envolvam a discussão sobre raças, é imprescindível por que todos os dias sou afetado por isso, é óbvio que isso aparecerá na minha escrita. Mas veja, não quer dizer que eu tenha sempre que tocar nesses assuntos, entende? Os escritores negros podem e devem escrever o que quiserem. Refletir sobre tudo. Até há pouco tempo eu só era chamado para falar de questões que envolviam assuntos raciais na literatura, muitas vezes só pelo fato de ser negro. De uns tempos pra cá é que tenho recebido convites para falar de outras coisas que envolvem literatura, como aconteceu de pedirem para eu falar sobre o Julio Cortázar num documentário. Ou seja, acho que é importante que se discutam assuntos como a negritude, mas não se pode limitar os movimentos estéticos de escritores negros.

Conta a lenda que existe literatura gaúcha. Mito ou verdade?

Nem uma coisa nem outra, eu acho. Isso de dar nomenclatura é complicado mesmo. Acho estranho tu classificar, por exemplo, o Caio Fernando Abreu como literatura gaúcha. O Caio é do mundo. O mesmo acontece com João Gilberto Noll. Agora mais esquisito ainda é taxar o Simões Lopes Neto como literatura riograndense. Ora, por acaso alguém vê o Grande Sertão Veredas como literatura mineira? Eu acho que são literaturas que, apesar de suas especificidades regionais, transcendem fronteiras. Por outro lado a gente tem que fazer um contraponto aí. Porque em algum momento as nomenclaturas podem ser necessárias, entende? Às vezes, como afirmação de uma identidade num ambiente hostil e que quer apagar determinadas marcas culturais, acho importante chamar a atenção dessa forma. Isso que dizer que em determinados momentos será preciso levantar a bandeira e dizer, olha isso aqui é literatura africana, isso aqui é literatura cubana, isso aqui é gaucha. Nada pode ser definitivo.  Distinguir-se ou fazer parte de um todo depende das circunstâncias.

Para finalizar, como tu vê o panorama da literatura nacional e quais são as possibilidades a serem seguidas pela tua geração de escritores?

Olha, eu acho que o Brasil tem produzidos bons escritores. Essa lista aí que saiu do Ministério da Cultura com os 48 escritores que representarão o Brasil no Salão do Livro de Paris, me parece que dá uma certa dimensão da nossa produção. Embora discorde de alguns nomes ali.  Mas, claro, toda lista exclui e é polêmica. Por outro lado creio que escritores como Helena Terra, Diego Moraes, Luis Roberto Amabile, Allan da Rosa e Gabriela Silva merecem atenção. Agora não sei se consigo fazer uma avaliação honesta sobre a minha geração, porque isso pressupõe olhar a produção com um distanciamento temporal. E também sei que minha resposta seria de cunho mais empírico até porque não leio tanta gente da contemporaneidade. Posso falar de impressões que tenho de alguns autores que tive acesso e que passaram dos 30 anos. Mesmo assim ainda sou passível de contestação. Primeiramente, tenho percebido uma preocupação de jovens escritores quanto a inovação da linguagem, com a quebra de estruturas narrativas. E sinceramente acho de uma grande coragem depois que tu tem aí um Joyce, um Faulkner ou um Guimarães, por exemplo. Acho importante que tenhamos autores preocupados com a forma. Em buscar novas formas de narrar. No meu caso, eu me sinto desconfortável ao tentar fazer essas inversões sintáticas, mexer na pontuação, misturar gêneros na construção de um romance. Eu gosto é de contar a história. Certamente me preocupo com linguagem, mas gosto da estrutura simples, linear, com tópicos frasais simples, como sujeito, verbo e predicado. Frases curtas. Outra coisa que tenho percebido também é que alguns temas se repetem nos novos autores. Me parece que a metaficção é o carro chefe de algumas produções contemporâneas. Personagens homens, brancos, por volta dos quarenta anos, em crise, oriundos de uma classe média decadente e que estão em busca do romance perdido. Romances que se estruturam sobre o “fazer” de um romance. Isso me incomoda um pouco, porque há uma infinidade de temas que poderiam ser abordados.  Eu gosto da diversidade. Tive uma formação religiosa na infância, estive em contato com a Umbanda e com o catolicismo. Mais tarde me apropriei do existencialismo sartreano. Então acho que a minha escrita já vem marcada com esse sincretismo. Para mim, Ogum, Cervantes e Nietzsche tem a mesma força estética. Não faço hierarquias. Os mitos africanos são tão importantes quanto o Quixote e o Zaratrusta. Por conta disso, às vezes me sinto fora do que esta sendo produzido, porque gosto de discutir questões metafísicas que envolvam a ideia de deus, dos orixás, por exemplo. Então para finalizar não consigo ver com nitidez que rumo a coisa está tomando. Falar que temos uma pluralidade pode soar clichê, mas creio talvez que seja por aí. Precisamos talvez diversificar os temas.

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