Entrevista: ‘O Processo’, de Kafka, levado ao teatro por companhia brasileira

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Conversa com Luiz Antonio Ribeiro, responsável pela dramaturgia do romance O Processo, de Franz Kafka.

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Em O Processo, temos um personagem condenado sem saber qual é seu crime. “Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum” – a frase meteórica na abertura do romance parece deslocar nossa sensação de conforto, como vemos na fala de Luiz Antonio Ribeiro, responsável pela dramaturgia da adaptação da obra de Kafka: “Existe uma opacidade que cria um abismo entre o que Kafka nos dá e o que acessamos”, afirma o dramaturgo.

Leandro Romano, diretor artístico, e Luiz Antonio Ribeiro resolveram levar ao palco uma adaptação um tanto quanto inusitada, pois na versão teatral de O Processo, Joseph K. será a cada dia um ator diferente e que não ensaiou com o restante do elenco.

Entre os nomes confirmados para a temporada que ocorre em novembro, na Sede das Cias, estão confirmados para representar Joseph K. os atores Alcemar Vieira, Bernardo Marinho, Fabio Porchat, George Sauma, Gregorio Duvivier, João Pedro Zappa, João Rodrigo Ostrower, João Velho, Johnny Massaro, Marcio Vito, Maria Eduarda, Pablo Sanábio, Pedro Henrique Monteiro e Renato Linhares.

Para entender melhor processo de adaptação, conversamos com Luiz Antonio Ribeiro.

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Luiz, os fãs da obra de Kafka devem estar se perguntando como foi a transposição de uma narrativa tão baseada na linguagem, como O Processo, para os palcos. Quais foram as maiores dificuldades na adaptação?

Pra mim, a questão entre o livro e o palco não se limita apenas a uma transposição, mas chega a ser uma espécie de tradução da língua do livro para a língua do teatro. O Leminski dizia, ao traduzir um livro, que entre trair o autor e o leitor, ele escolhia trair os dois. Então, traduzir O Processo, de Kafka, é um projeto que trai: trai o Kafka, seus leitores, o teatro e a plateia. Trai, inclusive, eu mesmo que fiz a dramaturgia.

Desde o começo, a preocupação minha e do Leandro Romano, diretor da peça, era que a situação de Josef K, a personagem, fosse transposta para o palco. Mais do que remontar a narrativa do livro, a gente queria que houvesse um ambiente kafkiano, uma opressão nos espaços e nas vozes que remontasse à estrutura kafkiana. Assim, nasceu a ideia de que o ator que fizesse K fosse sempre um convidado diferente a cada apresentação e que ele não saberia absolutamente nada da peça, não ensaiasse e não tivesse nenhuma indicação cênica. Aliás, ele tem duas informações: entrar no palco, dizer quem é e que personagem vai fazer. O resto é com os demais atores.

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Em O Processo, temos um personagem que é processado, mas não sabe o porquê. É uma obra notável da literatura kafkaniana, mas Kafka não quis publicá-la. Estas ironias todas não parecem justamente situações dramáticas que se adéquam ao teatro? Me ocorre que estes contrapontos possam ter despertado a intenção de levar esta história ao palco, não?

Na verdade, Kafka não publicou quase nenhuma obra em vida. Mais uma vez, quase tudo que conhecemos dele foi um ato de traição de seu amigo que lhe negou o pedido de destruir todo seu arquivo após de morto. Acho que isso acontece porque as obras de Kafka, em geral, não terminam, são incompletas, repletas de fendas e espaços em vazio. Existe uma opacidade que cria um abismo entre o que Kafka nos dá e o que acessamos.

No caso de O Processo, pensando ao lado da questão teatral, o que chamou atenção foi a configuração dos espaços e dos lugares em Kafka. O Castelo é um lugar definido, América é um continente, a Colônia Penal é uma ilha e, em O Processo, pelo menos na minha reflexão, a máquina do direito, da lei, e as burocracias são como instâncias físicas – como lugares – que nos tomam a subjetividade e nos fazem pensar apenas e somente a partir daqueles parâmetros. O Processo, enfim, é também um ambiente de ocupação e dominação.

Na versão realizada pelo Teatro Voador Não Identificado, há a curiosa situação de Joseph K. ser interpretado por um ator que não ensaiou a peça com os demais. Para um conhecedor da obra de Kafka, esta situação parece se encaixar totalmente com o protagonista de O Processo, que não consegue compreender o que está acontecendo com ele, vitimado por algo que não sabe o que é. Os atores convidados serão vítimas da montagem? De que forma vocês pretendem lidar com isso?

Olha, pode-se dizer que sim, eles são vítimas, mas apenas se olharmos a noção de vítima de um lugar em que normalmente não é visto. A vítima não é um ser passivo: mas agente, inclusive, da própria situação. Não creio que haja um binômio agente x vítima. Dessa forma, os atores serão sim vítimas do nosso aparato cênico e, de alguma forma, serão levados e conduzidos para aquilo que nós ensaiamos, produzimos e buscamos. No entanto, isso não quer dizer que o ator convidado não possa interferir, combater, lutar e se voltar contra a própria estrutura. Isso está previsto e é o que pode dar potência. O mais interessante do projeto é justamente isso: nós ensaiamos tudo para que um ator, espécie de deus ex machina às avessas, possa ao mesmo tempo viver tudo que a personagem de Kafka viveu, mas tentar, mais uma vez redimir aquela personagem. Não temos medo do que está imprevisto, pelo contrário, ele é absolutamente bem-vindo. Tomara que os atores convidados desmontem tudo que criamos, isso talvez signifique que ainda há esperança para o mundo criado por Kafka.

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Me chamou a atenção no Release da peça a parte em que se fala sobre “atualizar a obra de Kafka para o teatro, valendo-se de seu conteúdo crítico e politizado”. Evidentemente, a literatura kafkaniana se presta a um sem-número de interpretações – filosóficas, psicanalíticas, teológicas etc. A partir da adaptação que vocês estão fazendo para o teatro, qual o tipo de provocação é pretendida despertar no público?

Essa pergunta eu respondo apenas por mim, e não pelo grupo, e acredito que cada membro teria uma resposta diferente pra ela. Para mim, a grande provocação é deixar as pessoas sem lugar. O grande problema de nosso mundo de hoje é que todo mundo está plenamente estabelecido onde está: família, emprego, casa, trabalho, happy hour, bom senso, solidariedade, bondade, justiça, lei, religião. Ninguém percebe que perseguir o bem faz parte da lógica fascista: “o bem” como meta. É preciso se perder nos lugares e não percorrer a vida como um turista: estarmos apenas nos espaços planejados para e por nós. A obra de Kafka é por demais política, pois nos mostra que estamos sempre sem lugar no mundo e, como ele mesmo diz: “há esperança, só não para nós.” A transgressão, rasgar o mundo por dentro e fazer trazê-lo para fora, está no meu horizonte artístico e creio que, aos poucos, vou tentando compor isso.

Não consigo imagina uma arte dócil. Acredito em livros proibidos, em artistas não publicados, em profetas de banheiro de botequim. Pode-se dizer que Kafka não publicava porque não tinha obras, tinha mundos. Ainda bem que os teatros ainda não descobriram isso e ainda deixam eu e meu grupo encenarmos. Kafka não é um projeto artístico, é um projeto de vida.

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