A construção de Gabriel Heliodoro Alvarado (do romance O Senhor Embaixador) num contraponto aos “meio-homens”, pós-joyceanos.
James Joyce não tem culpa de nada, mas após Ulysses, algo que chamaremos de “infecção” espalhou-se como uma tendência literária, predominante: a construção de personagens masculinos frágeis. É evidente que não cabe mais o modelo heroico, no estilo Ulisses (agora nos referindo ao da Odisseia), que tem todo o poder para solucionar os problemas, utilizando-se da inteligência ou da força. No entanto, esta letargia justifica um modelo único de personagem masculino na literatura? Se esta bebe da realidade, se é que realmente bebe, não deveria procurar outros modelos de homens para inspirarem seus personagens?
Érico Veríssimo nos dá a resposta no romance O Senhor Embaixador.
Não nos ateremos ao fato do livro ter sido publicado durante a ditadura (em 1965), nem sobre ele ser uma brilhante alegoria das ditaduras sul-americanas, na figura do pequeno país-fictício, República do Sacramento – criado por Érico –, de maneira a ser este um romance de forte crítica social.
Pensemos apenas em um personagem: Gabriel Heliodoro Alvarado.
Obviamente, Érico Veríssimo exibe uma cartela de estereótipos na obra, apresentando vários dos homens modernos: do traído-conformado ao homossexual, do extremamente refinado ao intelectual-frustrado. Mas Gabriel Heliodoro Alvarado, O Senhor Embaixador que dá título à obra, faz o velho estilo “brucutu”, desaparecido da literatura contemporânea.
Leopold Bloom, de Joyce, é profundo, confuso, etc. Foi revolucionário o irlandês ter escrito este personagem. Mas o que se fez depois (ou o que não se fez, na verdade) é sofrível. Parece que todos os homens modernos são inseguros sobre sua sexualidade, com inclinações filosófico-intelectuais. Vá na rua e fique dois minutos olhando e verá que a fauna masculina não é composta desta única espécie. Repito, a culpa não é do Joyce, porém sim de um paradigma imposto pela crítica literária e seguido por uma multidão de escritores cegos por prêmios literários que apenas servem para alimentar seu ego.
Gabriel Heliodoro Alvarado é o homem por definição. Ou melhor, o modelo presente no inconsciente masculino como o que deveria se tornar. Com instinto apurado, consegue contornar as situações salvaguardando os outros em sua simpatia. Atrai para si os amigos que deseja, veio do nada para o sucesso, tudo que conquistou foi por suas próprias mãos; e, claro, tem as mulheres que quer – vejo pessoas pegando este trecho da citação e exibindo como “prova” de meu machismo.
Ao se colocar na mesa as características do embaixador, perde-se de vista seu lado “crápula” na história – ou, pelo menos, os homens perdem de vista (O embaixador foi um revolucionário que ajudou o ditador Juventino Carrera a chegar ao poder em Sacramento). Afinal, alguns milênios de exaltação a este modelo masculino viril não podem ser destruídos em dois séculos de bom mocismo e apelo ao politicamente correto.
É interessante notar a consciência que o personagem tem de si mesmo. Num diálogo, Pablo, um personagem que no princípio da obra é um intelectual acomodado, deixa escapar: “– […] Eu tinha todas as razões para odiá-lo e para desejar seu desaparecimento”; Gabriel Heliodoro Alvarado responde:
– Mas não odeia, Pablo, não odeia. E sabe por quê? Sabe por quê? É porque eu sou e faço muitas coisas que você teria vontade de ser e fazer, mas não é nem faz por causa dessa história que vocês chamam de “princípios”. Confesse! Você não sabe se seu caminho está mais certo que o meu.
“Eu sou e faço muitas coisas que você teria vontade de ser e fazer”, esta frase é a chave para compreensão do assunto que estamos debatendo neste texto. A imposição deste homem pós-joyceano é a própria castração da masculinidade – e eu sempre me arrependo de me render a termos freudianos, mas é preciso.
Um homem que vive culpado, inseguro, preocupado, não é um homem.
No diálogo que se segue, é evidente que Pablo perguntaria a Gabriel Heliodoro Alvarado se sua consciência não o acusava. Ao que, ele responde:
[…] Somos todos egoístas: a única diferença é que uns têm a coragem de ser o que são, até o fim, outro ficam acobardados, queixando-se da vida, justificando com filosofanças sua covardia ou impotência. Para mim só existia uma coisa importante: o momento presente. Domestiquei minha memória e ela aprendeu a esquecer o passado, tudo que não me convinha lembrar. O que me importava era viver.
Por uma literatura de personagens masculinos de outros tipos. E se possível, sem que se perca a verossimilhança. Com alguns “machos”, no sentido Érico Veríssimo do termo.