Escrita não criativa: você teria um minuto para falar sobre isso?

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Escrita não criativa: você teria um minuto para falar sobre isso?

A escrita não criativa consiste em recortar e colar trechos de obras diversas, gerando novos textos e sentidos, segundo Goldsmith – um exemplo é Opisanie Swiata, de Veronica Stigger

 escrita não criativa Kenneth Goldsmith
Defensor da escrita não criativa, Kenneth Goldsmith

A escrita não criativa é cada vez mais comum entre escritores contemporâneos por meio de um trabalho de curadoria. O curador de uma determinada exposição tem como trabalho apresentar as obras de artistas. A forma como ele expõe essas obras é uma espécie de assinatura. É o seu olhar enquanto curador que renova o modo de apresentar um determinado artista. Algo semelhante acontece na literatura.

O escritor e professor universitário Kenneth Goldsmith tem cada vez mais difundido a ideia de que os escritores são curadores da linguagem. Ele até chegou a ministrar alguns semestres de um curso de escrita não criativa.

O próprio Goldsmith tem desenvolvido projetos baseados nesse processo de curadoria. Um exemplo é o livro Traffic (2007), sobre Nova Iorque. Uma de suas referências é Passagenwerk, de Walter Benjamin, livro que consiste em um labirinto da Paris do século XIX, recheado por um conjunto de citações de trechos de livros, jornais, cartas, etc. No Brasil, o Kenneth Goldsmith publicou o curioso livro Trânsito, pela LunaPARQUE, sobre São Paulo, uma adaptação de Traffic.

 

Afinal, o que é a escrita não criativa? 

Basicamente, essa escrita consiste em técnicas de apropriação de obras de autores diversos. Não se trata de nenhuma referência que marca posicionamento crítico e contrário aos cursos de escrita criativa, necessariamente ou explicitamente.

A escrita não criativa consiste em uma prática de recortar e colar trechos de obras alheias. Isso gera um novo texto, com sentido e significado diversos.  Goldsmith acredita que esse tipo de autoria, pautada na curadoria, é uma consequência do mundo digital no qual vivemos. Esse processo assimila algumas das diversas informações que nos bombardeiam diariamente.

Esse processo de curadoria implica em contestar a originalidade autoral. Para Kenneth Goldsmith, é estranho que, na atualidade, um escritor prefira agir como um gênio em vez de agir como um gênio não original. No século 21, artistas se encontram em um novo momento de particularidade inventiva, caracterizada por procedimentos de apropriação. Essa não originalidade está ligada às práticas de citação, cópia, reprodução ou colagem, o que possibilita a criação de um novo fazer literário.

Não se trata de plágio ou imitação. A escrita não criativa ou o gênio não original no século 21 pode desenvolver a habilidade de reconfigurar, resignificar e reciclar ideias, gerando um novo texto. Essa prática de apropriação não é nova (um exemplo é o próprio texto de Benjamin), embora não receba muita atenção na crítica literária. No mundo contemporâneo, a prática não criativa pode apresentar novas formas importantes em função das novas tecnologias digitais.

A força da escrita não criativa está, desse modo, na capacidade de manipular formas já existentes, em um processo de apropriação que gera uma recriação artística. A escritora Veronica Stigger, em entrevista, afirmou que “O escritor é um canibal que se apropria de tudo”, quando falou do processo de composição de seu romance Opisanie Swiata.

 

A escrita não criativa em Opisanie Swiata, de Veronica Stigger

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Veronica Stigger | Foto: Daniel Queiroz

O romance de Stigger é um exemplo desse processo de recortar e colar que gera novos sentidos, ou seja, a escrita não criativa. Em um primeiro momento, para um leitor não muito atento, o romance parece ser apenas uma história de viagem. A história de Opalka e seu filho, muito doente, recém-descoberto pelo pai. A história da amizade entre Opalka e Raul Bopp.

No entanto, no final do livro temos uma lista de deveres. Uma lista de referências de livros, artigos e canções que devemos procurar depois. Ao buscar essas referências, o leitor entende a composição do livro. São leituras modernistas que aparecem no livro apropriadas, ou seja, transformadas em uma nova narrativa.

Textos de Sérgio Buarque de Hollanda, Mário de Andrade, Clarice Lispector, Jorge Amado e Carlos Drummond, canções de João Gilberto, Dorival Caymmi e Luiz Gonzaga, e filmes, como La dolce vita, de Frederico Fellini, fazem parte da composição estrutural do romance de Stigger.

Ao se apropriar de outros textos, Verônica Stigger não fez plágio ou cópia. Nem mesmo essa apropriação foi mero pretexto para constituir sua voz enquanto escritora. É importante observar que ela conseguiu, de forma magistral, apropriar-se dos textos dentro de uma lógica narrativa. Não são frases jogadas ou encaixadas a qualquer custo. São frases tão criativamente incorporadas ao romance e articuladas ao discurso que geram novos significados.

A leitura do romance, desse modo, pensando nos deveres cumpridos, remete ainda a uma pluralidade de vozes. Ou um compartilhamento de autorias, que gera uma voz autoral própria ao mesmo tempo.

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Observação não menos importante

Este texto só existe porque Luciene Azevedo escreveu o artigo “Romances não criativos”. No artigo, são citados outros livros, como Sujeito Oculto, da Cristiane Costa.  Mas é que eu li Opisanie Swiata  e sobre Kenneth Goldsmith. Fiquei com isso tudo na cabeça. Este é um texto nada criativo. Eu quis fazê-lo para que os trabalhos de Azevedo, de Goldsmith e de Veronica Stigger tivessem destaque no Homo Literatus. Perdão por qualquer bobeira. 

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