Aproximações e divergências entre as obras originais e adaptações cinematográficas de 2001: Uma Odisseia no Espaço, escrito por Arthur Clarke e dirigido por Stanley Kubrick, e do livro O Planeta dos Macacos, do autor francês Pierre Boulle, adaptado primeiramente pelo diretor Franklin Schaffner
Séculos atrás, eles imaginavam um futuro hoje superado ou nunca alcançado. Às vezes, até “adivinharam” invenções; por outras, foram, por meio da imaginação, além do que qualquer tecnologia conseguiu atingir atualmente. Tanto autores como diretores de histórias de ficção científica percorreram planetas, satélites, estrelas, tempo e espaço para nos instigar com a apresentação de espécies ou máquinas que estariam à frente da racionalidade do ser humano – e se não à frente, que ao menos quebrassem a ideia deste como único ser racional existente e dominante. Como diria Friedrich Nietzche, “o grande meio-dia será quando o homem se achar na metade de sua trajetória entre o animal e o super-homem e festejar seu caminho para a noite com a sua mais alta esperança”. É nesse caminho, entre animal e super-homem, que especula o gênero sci-fi.
Entre tantas obras adaptadas para as telas, estão o aclamado 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), escrito por Arthur Clarke e dirigido por Stanley Kubrick; e o clássico O Planeta dos Macacos (1963), de Pierre Boulle. A última história inspirou uma série de filmes e um seriado de animação – nesta análise, porém, só me atentarei à primeira adaptação cinematográfica, de 1968, dirigida pelo cineasta norte-americano Franklin Schaffner.
“I’m sorry Dave, I’m afraid I can’t do that”
2001: Uma Odisseia no Espaço, de Clarke e Kubrick, inicia-se há quase quatro milhões de anos, quando um objeto alienígena retangular, de superfície lisa e negra, foi avistado pelos primeiros nativos da Terra, os chamados “homens-macacos”. Os primitivos se alimentavam de vegetais, consideravam-se iguais uns aos outros e seus pensamentos e sentimentos eram arraigados apenas à instantaneidade e sobrevivência. No entanto, uma geração mais adiantada, extraterrestre, ao observar a possibilidade de desenvolvimento do planeta, testou, estimulou e brincou com os hábitos e destinos dos seres que ali habitavam. O homem-macaco que passava fome, fugia do leopardo – sua principal ameaça – e que travava brigas apenas urrando e gesticulando ao grupo inimigo de mesma espécie, passou a utilizar ferramentas como pedras e ossos para caçar, chegando até a assassinar um de seus iguais para estabelecer liderança e superioridade. Eis que realmente se inicia a selvageria (ou evolução?) no universo de 2001, um dos grandes clássicos da ficção científica.
A história é dividida em três partes: na primeira, mostra-se os primeiros passos evolutivos do homem; na segunda, evidencia-se a luta do ser humano contra a sua própria criação (com o rebelamento do computador HAL 9000); e a terceira deixa a brecha para o próximo patamar evolutivo da espécie humana, com o final evidenciado pelo nascer de um novo planeta, “a criança-estrela”, o super-homem. A linha evolutiva, do macaco até a inteligência artificial, a evolução tecnológica e a vida extraterrestre são temas que permeiam a obra, instigando à reflexão sobre o futuro tão incerto da humanidade.
O livro foi imortalizado com a versão cinematográfica de Kubrick, mas tanto Clarke como o diretor assinam o roteiro original do longa. Foi um processo de duas mãos: Kubrick sempre se preocupou com a questão da probabilidade de vida extraterrestre e convenceu Clarke – que além de escritor também foi um estudioso na ciência –, a desenvolver o roteiro junto a ele. O filme inspirou o escritor britânico a estender a história para os livros, que hoje formam uma saga: 2001 é seguido por 2010: Uma Odisseia no Espaço 2 (1982), o qual resultou em um filme com o mesmo nome, 2061: Uma Odisseia no Espaço 3 (1987) e 3001: A Odisseia Final (1997). A ideia da história surgiu a partir de um conto do autor:
Ora, antes de fazer um filme, você tem de ter um roteiro; e antes de um roteiro, você precisa ter uma história; embora alguns leitores de vanguarda tenham tentado deixar de lado esse último item, você só vai encontrar as obras deles em cinemas de arte. Eu já tinha dado a minha lista de meus contos mais curtos, e havíamos decidido que um deles – “A Sentinela” – continha uma ideia básica sobre a qual podíamos construir uma história. Arthur Clarke, em prefácio à edição do milênio, publicado originalmente no Brasil em 1972 pela Editora Expressão e Cultura.
As filmagens iniciaram em 29 de dezembro de 1965, nos estúdios da MGM Shepperton, em Londres. Apesar de o roteiro ter sido construído através de parceria e não ser propriamente uma adaptação, Kubrick não fez disso uma estratégia para facilitar seu trabalho nas telas – ao contrário, 2001 foi um de seus filmes com maior exigência técnica. O longa foi rodado num formato 70mm widescreen, o que, além de estabelecer novos padrões para o gênero de ficção científica, ampliou também as convenções na narrativa cinematográfica. A fotografia é magnífica, quase impensável para os padrões da época. Em 1968, a obra foi indicada em quatro categorias do Oscar: melhor diretor, roteiro, direção de arte e efeitos especiais, ganhando apenas o último.
Após a estreia, 2001 causou estranheza, resenhas negativas de críticos e reclamações do público pelo fato do ser incompreensível, lento, longo, superficial, sem humor. Hoje é visto como um clássico. O diretor cria uma narrativa não-verbal que contribui para a discussão sobre o possível conteúdo metafísico ou religioso do filme, que deixa, ao final, muitas incertezas. “Não se trata de uma mensagem que eu, em algum momento, tive a intenção de transmitir em palavras, 2001 é uma experiência não verbal. Tentei criar uma experiência visual que superasse a rotulação verbalizada e penetrasse diretamente no subconsciente com conteúdo emocional e filosófico”, esclarece Kubrick.
Existem poucas diferenças de enredo entre filme e livro: elas sem encontram principalmente relacionadas às atitudes do HAL 9000 em alcançar seu objetivo. Mas são diferenças leves, que não interferem no resultado final. É interessante observar as formas com que autor e diretor encontraram para explicar determinados trechos da história. Por exemplo: se Clarke utiliza palavras para descrever uma acoplagem, Kubrick narra além das imagens, utilizando com maestria a trilha sonora – Assim falou Zaratrusta, de Strauss, encaixou-se perfeitamente para criar a nebulosidade de 2001. Existem inúmeras cenas “mudas” (são 88 minutos sem diálogos) que geram, ao espectador, um sentimento de imensidão e mistério – e por que não, medo? – acerca do universo.
Por outro lado, Clarke, em seu texto, dá atenção à fundamentação precisa e detalhada dos aspectos científicos e tecnológicos, característica da hard science fiction, vertente do gênero ao qual se enquadra. Esta se define, de acordo com Roberto C. Belli, em Ficção Científica: um gênero para a ciência (2012, p. 94), quando a trama de uma história depende da ciência, qualquer que seja ela, e onde os personagens estejam envolvidos com a área científica, sendo geralmente cientistas, médicos, geólogos, físicos, exploradores espaciais etc. No longa-metragem, as explicações mais teóricas são dadas por outros métodos indiretos, como um programa de televisão ou até mesmo pelo HAL 9000. Outro ponto bastante notável da versão cinematográfica é como a tecnologia futurística (veja bem, estou apontando os aspectos tecnológicos imaginados para o filme na época, não os efeitos visuais, que são soberbos) imaginada no passado hoje já é, em certos casos, ultrapassada. Comparando-a com que temos em filmes como Interestelar (2014), de Christopher Nolan, chegam até mesmo a ser risíveis. O futuro de Kubrick é um pouco velho para nós: a leitura do livro nos faz imaginar um ambiente mais conveniente à nossa atual concepção de futuro. Ponto para Clarke.
Um mundo dominado por símios
Se em 2001 a fase mais primitiva do homem ficou para trás, em O Planeta dos Macacos os papéis se invertem: o futuro é liderado pelos símios. Uma tripulação, em uma viagem para de exploração científica, encontra um planeta com características muito semelhantes às da Terra. Nele, há vida humana, porém, estes seres agem de forma primitiva, sem ainda ter ao menos desenvolvido a fala como meio comunicativo. O choque, no entanto, evidencia-se quando os humanos do mundo desconhecido passam a ser caçados por macacos. São os símios que vivem em uma sociedade civilizada e detêm o conhecimento; os humanos, irracionais, são mortos ou capturados para serem cobaias em experiências científicas (em sua maior parte, experimentos neurológicos) ou para entretenimento em jaulas de zoológicos. O explorado vira o explorador e vice-versa.
De leitura fácil, com forte fluxo narrativo, O Planeta dos Macacos não é considerado por seu autor como um livro de ficção científica, muito menos a sua maior obra, mas sim apenas uma “fantasia agradável”, que se tornou famosa pelas adaptações para o cinema. Existem diversas distinções entre o original de Boulle e versão do diretor Franklin Schaffner, de 1968 – película objeto desta análise. Antes de entrar em detalhes, é relevante destacar, como bem elucidou o pesquisador Belli (2012), que a ficção científica para o cinema e a televisão é um gênero bem diferente dos livros:
A filmagem impõe limites por causa dos orçamentos de produção, por isso, é quase impossível realizar certas obras literárias de ficção científica. O autor sabe que escrever sobre o futuro é uma coisa, mas filmar o futuro é outra completamente diferente. As máquinas, naves, robôs, armas etc deveriam ser como o autor os descreveu, mas isso tem um custo que, na maioria das vezes, torna a filmagem impossível. É o orçamento que faz os filmes e as séries terem sucesso ou não. Claro que um bom roteiro ajuda, mas é só uma pequena parte desse difícil dilema do produtor de ficção científica. (p. 104)
Tendo-se esta observação em vista, é compreensível que Schaffner tenha transformado o planeta dos macacos na própria Terra – no livro, trata-se de um planeta distante –, a fim de evitar cenas trabalhosas envolvendo viagens espaciais. Esta é, evidentemente, uma das maiores divergências entre as duas obras, uma vez que provocou outras mudanças no roteiro. No escrito original, a história começa sendo narrada por um casal que vive em um casulo amoroso no espaço. Os dois passam a ler um manuscrito encontrado dentro de uma garrafa perdida. Trata-se do relato de Ulysse Mérou, um jornalista francês, que conta as suas aventuras num mundo governado por macacos. Acompanhado do professor Antelle e seu discípulo Arthur Levain, os três viajam em uma nave rumo ao sistema solar correspondente à estrela gigante Betelgeuse. O percurso leva cerca de 300 anos no tempo da Terra. No planeta desconhecido, o jornalista é capturado pelos macacos, que veem sua inteligência avançada como uma mera capacidade de repetição. Mas a médica Zira e seu noivo, Cornelius, acreditam em sua história e, aos poucos, Ulysse aprende o dialeto do planeta, o funcionamento da sociedade símia e seu sistema hierárquico. Neste meio tempo, ele também se relaciona com Nova, uma selvagem. Já no longa, a viagem espacial é realizada por quatro astronautas: Taylor (Charlton Heston), que corresponde a Ulysse, Landon (Robert Gunner), Dodge (Jeff Burton) e Stewart (Dianne Stanley).
O roteiro do remake de Tim Burton, lançado em 2001, é bem mais próximo da trama original do romance, mas a versão de Schaffner ganha mais pontos ao proporcionar ao espectador uma maquiagem incrível dos símios e pelo seu desfecho, surpreendentemente impactante, porém muito distinto da história de Boulle. No livro, o jornalista consegue voltar ao aeroporto em Orly, em Paris, onde descobre que os funcionários são macacos e descobre-se que o casal que lê o manuscrito, lá no espaço, também são chimpanzés. Por outro lado, o longa proporcionou uma cena igualmente memorável: o encontro da Estátua da Liberdade, semienterrada na areia, evidenciando de que o planeta tomado pelos macacos, após uma guerra nuclear, é a Terra. O filme evidencia isso como uma falha humana, mas no livro a intenção foi mostrar como as civilizações morrem através do tempo, com o retorno à barbárie. As duas obras fazem uma crítica social – os animais considerados inferiores agora são dominantes, o que nos leva a refletir sobre a própria postura do ser humano, colocando em xeque a sua tão esmera “racionalidade”. E Boulle não escreveu a história à toa: a Guerra do Vietnã acontecia durante o período em que o livro e o filme foram lançados; havia a preocupação de que a Guerra Fria desencadeasse uma guerra nuclear. O final do longa-metragem – idealizado por Rod Serling, o criador de Twilight Zone (Além da imaginação) – demonstra que os resultados dos descuidos do ser humano podem ser muito trágicos. A mudança não agradou muito a Boulle, embora sejam duas finalizações muito chocantes:
Acho que o autor de um romance é a última pessoa a quem se devem pedir conselhos ao se transformar um livro em um filme. Em comparação ao livro, houve várias mudanças na adaptação. Algumas delas me deixaram desconcertado. A primeira parte do foi muito boa; a maquiagem dos macacos estava particularmente boa e, como eu disse, poderia parecer ridícula, mas não foi o que aconteceu. Não gostei muito do final usado – a Estátua da Liberdade –, que pareceu agradar aos críticos. Eu, pessoalmente, prefiro meu próprio final. Pierre Boulle em entrevista ao periódico Cinefantastique, em 29 de fevereiro de 1972.