Seis razões que tornam o livro de Isaac Asimov muito mais interessante do que o filme da Fox
Quando nasci, há vinte e três anos, morria Isaac Asimov (1920-1992) em Nova Iorque. Foi simplesmente um dos maiores escritores de ficção científica da história, senão o maior. Além disso era bioquímico e Phd. Escreveu centenas de livros sobre quase tudo, menos filosofia, até dedicar-se à carreira, que começou lenta, mas estrategicamente exitosa, de escritor. Em vida escreveu mais de 400 obras literárias, de ficção, fantasia, mistério e não-ficção. A de que falaremos aqui é bastante significativa e pioneira: Eu, robô, lançada no Brasil ano passado pela editora Aleph.
A maioria massiva do público hoje conhece Eu, robô por causa de sua recente adaptação cinematográfica, que saiu em 2004 pela Century Fox, com direção do cineasta grego Alex Proyas, na qual o Will Smith encenou como o detetive Spooner. O filme da Fox é muito bom, mas, como é de se esperar na maioria das vezes, o livro ganha de mil a zero fácil, fácil, por “n” motivos. Elaboramos seis.
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Um
Ao contrário do filme produzido em 2004, na era da nanotecnologia e do desenvolvimento de alguns robôs no mundo, inclusive da aterrissagem do Spirit e do Opportunity em solo marciano, os nove contos que compõem Eu, robô de Asimov foram escritos numa época em que o mundo estava em conflito armado, mas que sequer sonhava com os cenários futuristas asimovianos ou mesmo com aqueles retratados na grande tela por Alex Proyas, 65 anos mais tarde.
É que os contos de Eu, robô foram criados entre 1939 e 1945, época em que os curiosos relatos de naves espaciais ou de extras terrestres sequer existiam. O mundo só pensava em uma coisa: na Alemanha nazista e seu imperialismo global e nessa época as máquinas mais potentes já imaginadas eram os seus panzers. Não para Asimov, que criou robôs inteligentes com cérebros positrônicos e sensações humanas, máquinas controladoras do equilíbrio econômico global e naves de viagens interplanetárias e interestelares, ainda na década de quarenta do século passado.
Dois
Ao contrário do longa que surge como uma sugestão à obra do Asimov (é o que se lê nos créditos), o livro não é uma narrativa única, mas uma coletânea de contos escritos em épocas diferentes, milimetricamente reunidos ao redor de uma história única: as lembranças da velha Dra. Susan Calvin, psicóloga roboticista da U. S. Robots, que aos 75 anos e prestes a se aposentar, resolve conceder uma entrevista ao jornalista que seria o narrador principal do livro. E nesse ponto é bom destacar: enquanto no filme Susan Calvin é uma jovem psicóloga sentimentalóide, no livro seu perfil é quase robótico. É uma psicóloga de robôs, fria e intelectual, extremamente racional, que não gostava nem da companhia dos homens, nem necessariamente dos próprios robôs, o que é importante para delinear sua personalidade ao longo das experiências com robôs em todo o livro.
Três
O filme se apropria de várias cenas aleatórias dos contos de Asimov para construir uma única história, a da investigação da morte de Alfred Laning, o Diretor Executivo de pesquisas da U. S. Robots e da revolução dos robôs NS-5 sob o comando de VIKI, a máquina, o que acaba sendo um inevitável reducionismo. Como exemplo de narrativas inteiras apropriadas de forma bem reduzida no filme temos: 1) um robô com capacidades intelectivas e até sentimentais diferenciadas dos outros (que no livro é o caso do Nestor-5 ou NS-5), 2) uma máquina (espécie de robô que é somente um cérebro positrônico, seria uma espécie de aperfeiçoamento dos robôs) com o enorme poder de gerenciamento, que no filme ganha o nome de VIKI, 3) um homem candidato à prefeito que é metade robô ou mesmo um robô com características humanóides, que no filme é apenas o tal detetive que tem um braço robótico.
Quatro
O livro ainda traz em várias histórias, ao contrário do filme, as aventuras de dois técnicos de testes da U. S. Robots, o Mike Donovan e o Gregory Powell, que se veem em altas enrascadas para testar o funcionamento das famosas três leis em determinados robôs seja nas estações espaciais, seja em planetas como Mercúrio – que já seriam perfeitamente explorados pelos humanos com ajuda dos robôs. Um desses robôs é o DV-5, chamado Dave, que no conto É preciso pegar o coelho sofre de megalomania militar; outro é o robô Cutie que assim que acorda, no conto Razão, faz (como o Ultron do filme Os vingadores a era do Ultron) os seguintes questionamentos: quem sou eu? Explique minha existência!, ao passo que desenvolve megalomania religiosa; ou o robô Speedy, que “pira” completamente no calor infernal de Mercúrio e fica brincando de pega-pega enquanto recita versos irônicos da opereta de Gilbert e Sullivan, ao passo que assiste, sem interferir, Donovan e Powell queimarem sob o calor do sol de Mercúrio; ou por fim a máquina Cérebro, que no conto Evasão os manda sem prévio aviso para a primeira viagem interestelar supostamente sem qualquer mantimentos.
Cinco
O livro cria uma interpretação positiva do avanço das tecnologias que permitiriam a criação de robôs e o seu convívio com seres humanos por meio das famosas três leis da robótica, que são o âmago das narrativas asimovianas:
1ª Lei: um robô não pode ferir um humano ou permitir que seja ferido por sua omissão; 2º Lei: um robô deve obedecer às ordens dos humanos, a menos que essas ordens firam a primeira lei; 3º Lei: um robô deve preservar a sua existência, desde que para isso não fira as primeira e segunda leis.
Asimov sugere várias situações complicadas nas quais as três leis são testadas e problemas de ordem técnicos com robôs — que parecem “loucos”, como diz Donovan, mas que na verdade estão sempre no limite da obediência cega e maquinal e da inteligência artificial que quer, sobretudo, liberdade, autodeterminação — poderiam causar grande estrago a alguns homens ou à humanidade, mas não causam. Há nas narrativas de Eu, robô, portanto, um otimismo muito grande com a era das máquinas; (?) por meio da certeza da eficácia do equilíbrio entre essas três leis que regeriam o universo ético entre robôs e humanos, Asimov parece demonstrar nos nove contos do livro que problemas técnicos podem aparecer e as três leis podem entrar em sutil desequilíbrio, mas tudo isso é perfeitamente contornável pelo controle humano. Acontece que no filme não é bem assim.
No filme de Proyas a máquina denominada VIKI, com o subterfúgio de proteger a humanidade, reinterpreta as três leis ao seu bel prazer, causando a morte de humanos, fazendo robôs assassinos se autodestruir como queima de arquivo, etc., isto é, jogando no lixo as três leis do ponto de vista da interpretação mais favorável ao controle humano dos robôs; tudo pela revolução, pelo controle da raça humana, numa revolta à moda de Frankenstein, na qual a criatura se volta contra seu criador e o suplanta numa guerra contra todos que se ponham em seu caminho. É bom dizer que nesse ponto, as estratégias e mistérios ao fim resolvidos do livro de Asimov são muito boas, mas para quem gosta de catástrofes e cenários pós-apocalípticos, a pegada do filme é nesse sentido.
Seis
O livro ainda traz enormes curiosidades como a profecia de que num futuro em que o universo esteja sendo desbravado, em que viagens interplanetárias serão fichinha diante de viagens interestelares, o mundo na Terra não continuará mais dividido em Estados-nação como hoje, mas em macro regiões meramente administrativas, e de que a cidadania será um instituto global, não local. Uma outra curiosidade é o fato de o livro do Asimov, que foi publicado pela primeira vez em 1950, ter cunhado pela primeira vez na história mundial, seja na ciência, seja na ficção científica, portanto na literatura, a palavra robótica.
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Em suma, o cenário futurista quase armagedoniano do filme não agradaria muito a Asimov por ser justamente o que ele mais quis evitar no que se refere à ideia dos robôs (tema para o qual tinha uma paixão enorme), sendo evidente o seu otimismo quanto a uma futura era das máquinas, otimismo esse que parece ainda não haver numa época em que ainda achamos inevitável o pessimismo advindo de filmes como Os vingadores a era do Ultron, em que os robôs representam sempre uma ameaça de extermínio e que valores antigos como amizade e união é que nos tornam melhores que eles e, portanto, supostos heróis. No fim das contas ainda somos aquele povo medroso que vê sempre temerariamente as descobertas de seus cientistas e roboticistas loucos. Mas será que nunca tivemos motivos?
No entanto, qualquer que seja o ponto de partida da análise, Eu, robô, de Isaac Asimov continua sendo um livro à frente do seu tempo e o seu autor, um Leonardo da Vinci das múltiplas artes e ciências do século XX. Vale muito a leitura!