A espera pela morte: a beleza suja e comovente de Corpo Sepulcro

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A espera pela morte: a beleza suja e comovente de Corpo Sepulcro
Só há duas opções de fuga para a alma: a loucura e a morte. Foto: Kyle Thompson

Corpo Sepulcro, novo livro de Mike Sullivan, alia o belo e o profano em relato sobre a decadência humana

Só há duas opções de fuga para a alma: a loucura e a morte. Foto: Kyle Thompson

 

Quem é o verdadeiro personagem de Corpo Sepulcro? É um protagonista sem nome, que pode ser tanto o autor, Mike Sullivan, como o próprio leitor – isso pelo simples fato de sermos humanos, mortais, suscetíveis aos diversos temores que a questão da finitude nos traz. Os fantasmas que vamos acumulando ao longo de nossa existência, ao dizermos adeus para aqueles que amamos, acabam nos assombrando e incitando à reflexão sobre o que estará do outro lado, sobre o que nos espera quando a morte nos convida para a sua dança: o renascer, o céu, o inferno ou o simples vazio. E é na tentativa de simplesmente não pensarmos na morte, na interrupção de algo que não compreendemos – a vida –, que procuramos escapes (sejam eles sexuais, alcoólicos ou alucinógenos) que levam à gradativa destruição, ou mesmo à imediata, através do suicídio.

Corpo Sepulcro (Confraria do Vento, 2015), em si, trata do processo de definhamento de diversas vidas: a do protagonista da história e das pessoas que o cercam. Primeiramente, na infância, sua irmã gêmea falece, afogada em um rio. O corpo nunca é encontrado. O acontecimento provoca um sentimento de culpa muito forte, que se materializa até mesmo no subconsciente, nos universo dos sonhos – na época, foi o irmão quem insistiu para que nadassem quando a tempestade estava à espreita. É o primeiro fantasma que aparece no livro: uma ferida sempre aberta na família. O pai é o segundo fantasma, e adquire esse caráter mórbido mesmo em vida, pois sua existência, a princípio, está fadada à uma cama fétida dentro de um quarto abandonado, intencionalmente esquecido pela mulher. A mãe exala cheiro de cigarro e café, não tão fortes a ponto de anuviar a (fingida?) depressão e amargura que carrega consigo desde o falecimento da filha.

O estado do pai, preso a um corpo “inviabilizado de interação” (“hemorrágico – o mais grave, inválido, fraldas descartáveis, demência, boca torta, grunhidos”, p. 32, grifo do autor) é a grande ironia do livro, pois, desde o início, ele é narrado pelo filho quando este se encontra em estado semelhante, devido à uma doença neurodegenerativa. A história se centraliza neste jovem, formado em Letras, que retorna de Londres, após intercâmbio custeado pelo governo, para ajudar o pai. Trata-se de um diário, o fluxo de consciência de uma pessoa que não consegue mais se comunicar, literalmente presa em si mesma: uma cova aberta, esperando apenas pelo repouso da consciência.

“Um corpo inviabilizado de interação é carente de beleza. Um corpo sem vida não tem serventia, restando apenas o descarte. A morte é intragável não somente pela perda definitiva de quem se ama, mas devido, em parte, à dificuldade de estarmos diante de um corpo em decomposição.” (p. 12)

Sullivan utiliza muito o aspecto sensorial para tratar do feio, bizarro, nojento, repulsivo, repugnante e sujo – fator bem evidenciado na descrição do pai doente, após dias sem cuidados higiênicos, em um quarto cheirando a mijo, merda, vômito, éter e iodo. Os cheiros estão sempre presentes, para mostrar a ruína humana, e é por meio deles que os vícios se evidenciam. O protagonista não consegue estabelecer uma vida normal, pois para ele sua existência é, de fato, um tormento, um estado constante de luto. Sente-se deslocado, desajustado no mundo, assombrado por diversos fantasmas, que se multiplicam no desenrolar da narrativa. Então, não hesita em se entregar “[…] ao cigarro, ao café, aos livros, ao sexo nas ruas – a variedade de seres ansiosos por trocar experiências –, à maconha, à cachaça, à cerveja […]”. Um ser que tende aos extremos, não se importando com a saúde, com os mal tratos consigo mesmo. Qualquer tipo de relacionamento ou trabalho (procrastina constantemente a tradução de Orlando, de Virgínia Woolf) são afetados pelos adultérios e pelo estado permanente de decadência, que desencadeiam diversos acontecimentos trágicos (“Em que canto dos olhos ela escondeu de mim sua vingativa tendência suicida?” (p. 178)).

 

Outro ponto bastante polêmico do livro é a sexualidade. Adotando uma descrição bolañística, Sullivan mostra um lado sujo do sexo, em que o protagonista tem preferência por corpos suados, fétidos (a ponto de pedir para a companheira mijar para ficar com odor de urina durante o sexo oral) e lugares medíocres, repugnantes, localizados no submundo da cidade do Rio de Janeiro. O asco excita. Masturbação e relacionamentos com prostitutas, travestis e homossexuais circundam a história, mas não interrompem o ponto central: a crise existencial. O questionamento sobre a existência e a natureza de deus é constante, como Sullivan evidencia belamente nos capítulos 15 e 16. O autor chega a classificar os tipos de deus: o das crianças (que traz encanto), dos adultos (o decepcionado com a humanidade, que se esconde) e da velhice (o único que chora, comovido, ao observar a decadência humana e sua proximidade com a morte).

“Eu queria ser Deus para banir do mundo o sofrimento humano. Com um objetivo grandiloquente, utópico e desvairado como esse, a flecha da fé viaja numa direção oposta. Você se torna um ateu. A miséria da vida e o pouco ou nenhum entendimento das coisas é o que resta.” (p. 60)

Adotando frases curtas e tom poético, o autor traz uma leitura breve, porém, intensa, entrelaçando leveza no estilo e peso no conteúdo, o que torna uma obra dolorosamente bela. O aguardo do último suspiro, que vem tão realístico, quase brutal, inesperadamente esperado, funciona como um tapa na cara do leitor, fazendo-o guardar Corpo Sepulcro na estante e abrir uma garrafa de vinho. “O gosto rascante de um bom cabernet sauvignon” (p. 20).

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Nota: Ao final deste livro, que me leu mais do que eu a ele, meus próprios fantasmas – tantos deles criados nesse ano, um período atormentado por diversos lutos – vieram me espreitar. Acabei me sufocando, perdendo-me em meu próprio corpo, dentro das mortes que nele trago. A falta de ar trouxe lágrimas, que me impediram de ler o último parágrafo da história, forçando-me à segunda leitura. Este livro foi um dos meus escapes mais perfeitos: “Suspensão. Levitação. Ausentar-se de si mesmo, ainda que temporariamente” (p. 18). Obrigada, Sullivan.

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Sobre o autor de Corpo Sepulcro: Mike Sullivan nasceu em Itaocara, Rio de Janeiro, em 1979. Psicólogo e escritor, publicou os romances Retorno ao pó (2009), No vale de ossos secos (2011), Amor em tempos de solidão (2012) e Terapia das almas suicidas (2013). Corpo sepulcro recebeu Menção Honrosa no Concurso Nacional de Literatura Prêmio Cidade de Belo Horizonte 2013.

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