Essas palavras que nos definem

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Palavras grandes, pequenas, abstratas, diretas, são elas que nos definem

 

palavras[1]

“Eu tenho medo dessas palavras grandes que nos deixam tão infelizes”.

A frase de Stephen Dedalus, personagem do escritor James Joyce, é curiosa. Ela foi pronunciada no começo do Ulysses, obra cujas particularidades podem causar repulsa, admiração, curiosidade ou até assustar quem ouve falar delas. Não precisamos compartilhar o medo de Stephen, homem com idade adulta no romance em que fala esta frase; pode até ser que ele tenha trocado os receios de quando era criança – fase de sua vida descrita no romance Retrato do Artista enquanto Jovem, também de Joyce – por preocupações com palavras.

Ou cuidado, se preocupação soar demais, e involuntariamente conceder às palavras pesos maiores do que os reais. É buscar a palavra exata para descrever uma sensação, uma experiência – seja de leitura ou não -, tirar os excessos. Passar uma ideia do que aquele personagem é pelo refinamento de sua linguagem e seus modos, ou por seu completo desleixo. Fazer a pessoa mergulhar durante a leitura; melhor ainda se ela esquecer desse mundo um tempo, é até sinal de imersão, e a pessoa pode levar um susto quando a chamarem de volta à realidade.

Cuidado até parece uma palavra simpática, que nem quando a gente diz ‘cuide-se’ ao se despedir de alguém próximo; ou quando a gente deita o livro na mesa para cuidar da água do café ou dos cachorros. Também é o nosso receio e sua falta, quando vai recomendar uma leitura pra alguém e fica pensando fulano leu mundo e meio de coisas, não vou passar esse aqui; ou quando devolve um livro que nos rendeu uma leitura indigesta porque essa coisa chata nem é tudo isso.

Acontece de tudo quando se quer contar de uma leitura. Do excesso de zelo, às vezes esbarrando em preciosismos e marcas tão autorais que a menor sugestão parece uma grande interferência. De sua falta, escrevendo e falando do jeito que dá porque o tempo impõe a necessidade dessas ações pra ontem, e só depois podemos perceber que uma linha mais pro meio nem precisava ter saído, aquela do primeiro parágrafo ficaria melhor no começo do segundo, ou aquela fala de tal livro era muito longa, dá pra falar melhor de outro jeito, já foi. O tempo corria e era pra fazer alguma coisa, ainda que às pressas, não dava pra ficar ‘pensando’ na melhor forma de fazer.

Também existe o uso de palavras supostamente ‘grandes’, emprestando a fala de Stephen no começo dessa crônica, enfeitando texto e fala e dizendo menos do que o desejado; e aí podemos ter romance de costumes, poesia, crônica, romance, autoficção, conto, crítica literária, transgressão, alta literatura, não-romance, literatura e outras, usadas vá saber de quantas formas que podem soar falsas, como se usadas apenas pra ‘impressionar’, ou atender a necessidades tão particulares que excluam o entendimento de possíveis leitores e ouvintes, priorizando afirmações em vez de clareza. Nem sempre tais palavras são enfeites, mas quando nos parecem assim, podemos imaginar outra forma de transmitir o que não nos pareceu claro.

Até mesmo a palavra que nos descreve pode soar ambígua ou incompleta – leitores. De quê, de quem, de gênero, autores, editoras; contamos apenas com palavras, grandes, pequenas, diretas, abstratas. Todas compõem nossa biblioteca particular, erguida por letras novas ou revisitadas, pelas que nos definiram um dia e por aquelas que podem nos definir – até acharmos outras mais com a nossa cara.

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