Estação Onze, livro da escritora Emily St. John Mandel, apresenta um mundo pós-apocalíptico, trabalha com contrastes e, ao mesmo tempo, é poético e bem escrito
Na obra Estação Onze, há a velha ideia do mundo pós-apocalíptico e, nele, quase toda a população de humanos foi extinta pela “Gripe da Geórgia”. Histórias com essa premissa, em regra, utilizam a luta pela sobrevivência como pretexto para expor a natureza humana. São cenários que nos aproximam dos animais e demonstram quão tênue é a civilização e a racionalidade.
A própria escritora ressaltou, em entrevista para o TVOntario, que a forma mais interessante de falar sobre o mundo moderno seria através da sua ausência. Exemplos de abordagem semelhantes não faltam, principalmente depois do sucesso da série The Walking Dead, baseada na história em quadrinho de Robert Kirkman e Tony Moore.
Em contraste com a ideia da brutalidade pós-civilizatória, Emily nos oferece a arte. No livro, um grupo de sobreviventes circula entre os vilarejos formados depois do cataclismo, encenando peças de Shakespeare e realizando concertos ao ar livre. É a Sinfonia Itinerante, cujo lema “porque sobreviver não é suficiente” é inspirada no episódio Survival Instinct, da série Star Trek: Voyager.
Estamos no Ano Vinte (os anos são contados a partir da epidemia) depois de a humanidade ser praticamente extinta. A gasolina estragou por volta do Ano Três. Não há energia elétrica, antibióticos, ar-condicionado, analgésicos ou outros confortos que sequer percebemos, até deixarem de existir.
A construção da narrativa, em terceira pessoa, tem múltiplos focos. Ela acompanha personagens que viveram integralmente nos mundos antes ou depois do Ano Zero, assim como aqueles que, já adultos, participaram da transição.
Arthur Leander, um famoso ator, é o eixo central de todos os personagens. Ele tem um ataque do coração e morre no palco logo na abertura do livro, às vésperas da disseminação da Gripe da Geórgia. Por meio dele, temos a perspectiva crítica do mundo como era. É o típico homem em crise de meia-idade, que questiona seus valores e atravessa o processo de tentar descobrir aquilo que realmente importa em sua vida.
Jeevan Chaudhary, um ex-fotógrafo paparazzi que largou a profissão para se tornar socorrista, assistia à peça e prestou os primeiros (e últimos) socorros ainda no palco. Por meio do relato da sua vida, vemos a transformação entre a antigo e o novo mundo. É um personagem que igualmente serve como pretexto para uma avaliação sobre valores e como eles, e não os objetos no nosso entorno, definem o ser humano.
Kirsten Raymonde é uma menina de oito anos que está em cena quando Arthur sofre o seu ataque do coração. Ela sobrevive sem os pais, mas com a assistência do irmão mais velho, aos primeiros anos depois da epidemia. Nesse período, sofre traumas que lhe bloqueiam a memória. Depois do falecimento do seu irmão, ela se junta à Sinfonia Itinerante. Kirsten nos dá a perspectiva daqueles que não guardam lembranças do mundo como ele foi.
Não consigo lembrar aquele ano que passamos na estrada e acho que isso significa que não lembro do pior de tudo. […] O que eu quero dizer é que, quanto mais a gente lembra, mais a gente perdeu.
Além desses três, outros personagens, em tempos narrativos diversos, compõem um rico e bem construído mural de personalidades. Alguns, como Miranda, primeira mulher de Arthur, e Clark Thompson, melhor amigo do ator, são construídos com tanta sensibilidade e empatia que deixam um amargo gosto de separação quando o livro termina. Emily conduz a narrativa de forma hábil, estabelecendo ligações entre todos, assim como entre eventos no passado e no presente (do livro), sem que elas pareçam forçadas.
O livro, em conclusão, é ambicioso, poético e muito bem escrito. Equilibra um consistente desenvolvimento dos personagens, das suas histórias entrelaçadas e de algum suspense. Esse suspense, deixo claro, não é a nota condutora do livro, mas o drama.
Estação Onze é o quarto livro de Emily St. John Mandel e o único traduzido para o português. A obra ganhou o Arthur C. Clarke Award em 2015, e foi finalista de outros prêmios, como o National Book Award, Pen/Faulkner e Bayleys Womens’s Prize. Foi indicada como um dos dez melhores livros do ano pelo The Washington Post, TIME Magazine, TimeOut New York, entre outros, tendo figurado oito semanas na lista dos mais vendidos do New York Times. Seus direitos para adaptação ao cinema foram comprados por Scott Steindorff.