Por Carla Bessa
Segundo a própria autora, esse seu novo e décimo romance versa sobre variantes de relações interpessoais. Mas há também quem afirme que seja um livro sobre amor e prostituição e ainda outros veem nele um palimpsesto onde a prostituição se inscreve sobre as relações amorosas. Já eu entrevejo ali outras arestas, ou, apropriando-me do discurso da protagonista-narradora, o que fica para mim, é outra coisa. O que fica para mim em “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” é um rastreamento de ações compensatórias e rotas de fuga. Não que ela tenha me dito. Eu é que vejo.
Mas, basicamente, todas essas leituras são possíveis. Porque este palimpsesto, escrito por uma das penas mais marcantes da literatura brasileira contemporânea é, como todo grande livro, uma sedimentação. E deve ser lido (ou erodido) camada por camada, o leitor (que a autora entende como co-autor), se transforma em arqueólogo numa busca obcecada por resquícios a partir dos quais poderá construir a sua própria história.
Na superfície: os encontros vespertinos no escritório de João.
A narradora, uma designer desempregada, encontra-se todas as tardes com João, um cara que trabalha numa editora à beira da falência. Não se sabe muito sobre a relação dos dois nem porque ele conta de seus compulsivos encontros com garotas de programa, no entanto, sem entrar em detalhes. Ela ouve (também não sabe bem porque) e é obrigada a fechar os buracos da narração com situações e personagens imaginadas.
Porque eu ia lá todos os dias. / Não sei por quê. Não tínhamos grandes elos, eu e João, já disse.
Mas imagina o porquê:
E aqui entra uma explicação que tento elaborar e reforçar até hoje com pouco sucesso. / Mais de uma. / A explicação da falta do que fazer. /Não tenho nada para fazer da minha vida…. / A explicação de que lá dentro está melhor do que lá fora.…
E assim, de explicação em explicação, vamos extraindo aos poucos o cascalho da superfície e chegamos à sondagem, montando um mosaico de especulações, sem garantias de veracidade ou preocupações com verossimilhanças. E aí está a força da narrativa singular de Elvira Vigna. Ela é a mestra da insinuação, do “contar, não contando”, das frases elípticas, cheias de deslocamentos, mas diretas, deixando o relato sempre em aberto. As coisas nunca são, mas podem ou poderiam ter sido.
O que poderia ter sido a minha vida e não foi. / …Seria um João que poderia ter sido um João bom./ …Tanto quanto o que poderia ter sido o meu e de Mariana. / …E Lola poderia ter sido vista por João, em algum momento antes do que eu acho que afinal foi.
Continuando a escavação: Transgressão. Infância. Poder. Competição.
Algumas camadas mais abaixo e voltando repetidamente no decorrer de todo o romance, numa espécie de loop e em diferentes constelações: os temas de João, que são os nossos, atemporais e universais: Transgressão. Infância. Poder. Competição.
João fala e fala. / Ele tem temas. O da transgressão é o principal. / Outro é o do menino em frente à vitrine de doces de uma padaria. / …O terceiro tema é o do poder. Quem, dos envolvidos em uma relação prostituta-cliente, detém o poder. / … A competição entre os machos. Ou a competição entre os machos e a fêmea, igual.
Temas que, no entanto, são só insinuados, a autora larga aqui e ali, espalhados pelo relato, alguns indícios de suas reflexões, sem impor caminho a ser seguido, montando um quadro cubista (a autora também é desenhista!), no qual múltiplas perspectivas são sobrepostas numa mesma imagem.
E, lá no fundo: a questão do amor.
Porque esse também pode ser um livro sobre a incapacidade do amar (ou seja, ver) o outro, enquanto outro. Em “Pulsões e Destinos das Pulsões”, Freud disse o seguinte: „O amor é ambivalente: o sujeito ama o objeto, mas, na verdade, o objeto é ele mesmo, uma vez que já incorporado no Eu… O interesse pelo objeto surge num ímpeto de apoderamento indiferente ao dano ou à aniquilação que possa causar ao objeto, quase não havendo distinção entre essa forma de amor e o ódio na sua relação com o objeto.“
Ele poderia ter razão. E é aqui que as questões se entrecruzam. Na incapacidade de ver o outro, os olhos escaneam o espaço em busca das rotas de fuga.
As rotas de fuga, meio que se infiltrando pelas camadas todas.
Fujo. Alguma das minhas rotas de fuga, sei lá qual… / Tenho algumas rotas de fuga para tirar João da minha frente… / E faltou uma das minhas rotas de fuga do escritório.
Todos parecem estar fugindo o tempo todo, esgueirando-se da realidade e das próprias insuficiências.
João foge: do cotidiano, de um casamento mais ou menos encenado, de uma latente homossexualidade, da competição com os colegas de trabalho. Sua rota de fuga: os descaminhos de uma vida dupla com garotas de programa. Até que a fuga vira uma realidade e o que fica é o limbo onde algo se perde entre o caminho de ida e o de volta de suas escapadas. Não se satisfaz nem tampouco se reinventa.
A esposa de João, Lola: foge de João e da submissão se prostituindo com o seu melhor amigo (de João). Não sabemos se a satisfaz.
A narradora: foge da inconstância, ainda que voluntária, do permanente anseio de mudança, do tédio, da solidão. Foge da onipresente possibilidade de fuga. Tenta fixar um ponto de referência no ouvir o outro, mas esse ouvir é um falar às avessas, pois revela-se um (re)construir o outro.
O mesmo se dá com os outros personagens. Mariana, mãe de Gael, prostituta: foge (literalmente, vai embora). Cuíca, o colega de trabalho de João: foge (vai morar num carro de luxo e acaba morrendo afogado).
Todos, o tempo todo, com um olho no interlocutor e outro nas saídas de emergência, estão nas relações, mas já calculando uma possibilidade de cair fora. Calculando, sim. Porque aqui as relações interpessoais já viraram há muito um negócio, uma permuta. E neste aspecto, todas se equiparam. Reduzem-se, no melhor dos casos, a uma solução win–win. Eu te dou isso e você me dá em troca. Sorrisinhos com fins lucrativos. Uma prostituição. Um palimpsesto de putas.