A estreia de Nelson Rodrigues no teatro

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Não é segredo que as obras de Nelson Rodrigues retratam, de modo satírico e irônico, a sociedade brasileira e suas transformações vertiginosas. A partir de seu olhar crítico e bem-humorado, nosso Shakespeare brasileiro escreveu 17 peças que marcaram, definitivamente, o modernismo brasileiro. Tudo começou com A mulher sem pecado.

A atriz Stella Perry em ‘A Mulher sem Pecado’, 1946. Foto Carlos. Cedoc-Funarte
A atriz Stella Perry em “A mulher sem pecado”, em 1946. Foto de Carlos, Cedoc-Funarte

A mulher sem pecado marca a estreia de Nelson Rodrigues no teatro brasileiro. É uma peça psicológica, um drama em três atos. Foi escrita em 1941 e já no ano seguinte estreou no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro. Seus valores dramáticos já eram considerados renovadores e, por isso, contribuíram fortemente para a consagração de Nelson no teatro.

Em relação às outras peças de Nelson, A mulher sem pecado, do ponto de vista estético, é uma obra conservadora, pois pende para o tema da possibilidade de um adultério da mulher e não a consagração do ato adultero em si. Em 1942, a possibilidade de um adultério partindo do lado feminino, juntamente com distorções psicológicas, já não eram escandalizantes nos palcos do país.

A obra toma vida a partir do ciúme doentio de Olegário por sua mulher Lídia, muito bela e jovem. A fim de saber se era traído ou não, paga uma quantia em dinheiro extra para seus empregados Umberto, o chofer;  Inézia, a criada da casa; e para Joel, seu empregado. O marido tem ciúmes do irmão de criação da mulher, Maurício, e até mesmo do fato da mulher se ver nua.

Vejam o trecho em que Olegário reclama do fato de Lídia andar de quimono ou roupão pela (sua própria) casa e passa a fazer um discurso a respeito de seus ciúmes:

— Imagine se, um dia, você abre a porta

do quarto e — esbarra com Maurício. E

8520917232mesmo que não esbarre com ninguém.

De qualquer maneira, não quero!  Por

mim, você nunca tiraria a roupa. Nua

no banheiro — nunca. (suplicante) O fato

de você mesma olhar o próprio corpo é

imoral. Só as cegas deviam ficar nuas.

(ri) Ou, então…  Sim, há alguém que

poderia entrar no quarto de todas as

esposas. Compreendeu? Alguém que… Não,

Maurício. Maurício, não. Eu pensei que

ele fosse um anjo. Mas falta em Maurício

não sei como possa dizer. Ele não é mutilado,

ouviu? Perfeito, realmente perfeita

é a pessoa que, na meninice… (págs. 65-66)

Nelson, logo de primeira, construiu uma peça repleta de traços que marcam fortemente seu teatro: as situações irônicas, a questão do adultério, as situações grotescas inesperadas e as obsessões.

Na peça, impera-se logo de início a ironia, quando Olegário finge ser paralítico para testar Lídia. Já satisfeito com o que seus testes mostraram, crê, finalmente, na fidelidade da mulher. Ao acreditar, descobre que Lígia fugira, e com o seu chofer, que era encarregado de vigiar a patroa e fingia ser impotente para poder se aproximar das mulheres sem ser notado, pois ninguém desconfiaria de um mutilado, de um impotente.

Olegário não só mente e testa a mulher, com o intuito de saber se ela é ou não fiel, como, também, sente prazer em vê-la sofrer, em torturá-la, e nós, leitores, também sentimos essa pressão psicológica ao ler. O seu prazer é gerado pela própria obsessão. Com o disfarce, ele mantém uma postura de indefeso e vulnerável; deste modo, desperta compaixão e todos o perdoam, até mesmo pela dramática obsessividade. A paralisia também serve de amuleto para descobrir a verdade sem que ninguém desconfie de suas investigações. Além disso, para ele, a paralisia parece ser um meio de segurar o casamento.

[Parafraseando] -Nelson -Rodrigues- “Sou -um -menino- que -vê- o- amor- pelo- buraco- da- fechadura...-anjo-pornográfico-anjo-da-ficção-teatro-peças-livros-contos-futebol-A-mulher-sem-pecados-Fluminense-NO falso paralítico descobre a verdade que buscava, que nada mais é que a fidelidade de sua esposa, e após isso decide desmascarar a si mesmo. No entanto, ao descobrir essa verdade, criou-se outra versão de verdade, uma recente: Lídia, depois de ser tanto torturada pelo marido, cansou-se; mudou de caráter, não é mais a pobre mulher do paralítico; trai o marido, e com seu chofer, que também o enganou.

A partir dos traços aberrantes de Olegário, Lídia e Umberto, Nelson faz um velado retrato da sociedade em que vivia. Com a falsa paralisia e a falsa impotência, o dramaturgo nos mostra o quanto o ser humano é capaz de mentir e fingir, o quanto o ser humano falha no quesito caráter.

Ao final, o que Nelson Rodrigues esfrega em nosso olhos é que a perversão, a obsessão e a máscara de Olegário moldam o carácter de Lídia. Ao pressioná-la tanto, acabou destruindo o que antes era verdade: a fidelidade. O marido, com suas insinuações e alfinetadas, fez com que sua mulher se sentisse sufocada, despertando, desse modo, um profundo desejo de liberdade. Lídia torna-se outra: a mulher com pecados.

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Leia a peça A mulher sem pecado na íntegra.

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Referência:

RODRIGUES, Nelson. A mulher sem pecado. Roteiro de leitura e notas de Flávio Aguiar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

 

 

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