A estrela literária que Elizabeth Bishop reconheceu em Clarice Lispector

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CLARICE LISPECTOR E ELIZABETH BISHOP
Clarice Lispector (à esquerda) e Elizabeth Bishop (à direita). O encontro entre duas grandes figuras femininas.

 

O impacto de Elizabeth Bishop com a obra clariciana:

Em janeiro de 1963, uma das mais importantes poetisas da língua inglesa do século 20, Elizabeth Bishop, escreveu ao amigo e também poeta norte-americano Robert Lowell, do Rio de Janeiro, sobre a literatura de Clarice Lispector: “Eu traduzi cinco produções literárias de Clarice. A maioria narrativas curtas e uma mais longa. The New Yorker está interessado em publicá-las (penso que ela precise de dinheiro, de modo que seria bom, o dólar sendo o que é…).” E completa: “Quando eu estava pronta para enviar o lote, com exceção de um, a escritora desapareceu da minha vista ‘completamente’ (na carta ela frisou entre parênteses) e por cerca de seis semanas. Estou perplexa. Talvez seja o ‘temperamento’ ou mais provavelmente apenas a usual ‘inércia maciça’ que corre a cada passo. Em suas histórias têm coisas muito boas e elas soam muito interessantes em inglês, e eu estou muito satisfeita com suas narrativas.”

Em junho do mesmo ano, Bishop escreveu novamente sobre Lispector: “Clarice foi convidada para outro congresso literário, na Universidade do Texas, e está sendo muito arisca e complicada — embora eu pense que no fundo sente um bocado de orgulho — e é claro que ela vai. Irei ajudá-la em seu discurso. Suponho que possamos ser “amigas” — mas ela é a escritora mais não literária que eu já conheci, e “sem rachaduras em sua obra” (relativo a influências evidentes), como costumávamos dizer. A Clarice nunca me parece ler nada que eu possa descobrir. Eu acho que ela é uma escritora “autodidata”, como um pintor primitivo”, Bishop referia-se ao tom muito particular e característico de sua prosa.

Em Bishop’s Poems, Prose and Letters , publicado pela Library of America, há três traduções de Lispector, incluindo o surpreendente conto A menor mulher do mundo, que tem um poder primitivo que Bishop observou, como uma verdadeira e astuta sabedoria, uma noção do que pode ser feito com o tom, com finais de parágrafo, com o diálogo, que só poderia pertencer a uma pessoa profundamente literária. Lispector tinha, em comum com Borges em sua ficção, uma capacidade de escrever como se ninguém nunca havia escrito antes, como se a originalidade do trabalho e frescor chegasse ao mundo bastante inesperado, como o ovo posto no conto de Lispector intitulado Uma Galinha, que Bishop também traduziu.

A ideia de Clarice Lispector como escritora fugaz, estranhamente não confiável, complicada, de alguém que pudesse desaparecer, como Bishop teria escrito, é essencial para seu trabalho e sua reputação. A autora de obras como A maçã no escuro e A paixão segundo G.H. nasceu na Ucrânia em 1920, mas chegou ainda muito menina no Brasil. Sua formação russa e a fuga de sua família judaica são descritas em detalhes por Benjamin Moser na brilhante biografia Clarice, (Why This World, título original em inglês). Seu biógrafo norte-americano diz que “sua individualidade inflexível” fez de Lispector um objeto de fascínio para as pessoas ao seu redor e aos leitores, mas havia sempre a sensação de que ela estava profundamente encantada com o mundo, porém desconfortável com a própria vida, como, aliás, com a sua própria narrativa.

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Um dos grandes hábitos de Clarice Lispector, durante a sua produção, era escrever com a sua máquina de escrever em cima do colo (como na foto acima).

 

A nova tradução em inglês de A hora da estrela e considerações sobre a obra:

Em outubro de 1977, pouco antes de sua morte, a escritora publicou a novela A Hora da Estrela (traduzida recentemente para o inglês no selo Penguin Classics), que apresenta todo o seu talento e excentricidade numa narrativa autoconsciente, a qual se lida densamente com as dificuldades e os estranhos prazeres do ofício da escrita; procedendo na tentativa de contar a estória de Macabéa, uma mulher que, Lispector disse a um entrevistador, “era tão pobre que tudo o que ela comeu eram cachorros-quentes”. Mas a escritora deixou claro que esta não era “a estória”, no entanto. Era “sobre uma inocência esmagada, de uma miséria anônima.”

Sua novela é sobre uma nordestina do estado de Alagoas (os Lispectors moraram os primeiros anos no Recife quando vieram da Ucrânia) e que, em seguida, passa a morar no Rio de Janeiro (como Clarice fez), onde trabalha como datilógrafa e namora com Olímpico de Jesus, mas que acaba sendo traída pela própria colega de trabalho, Glória.

Em uma cena no final do livro, a heroína vai para uma cartomante, Madame Carlota (inspirada na tal cartomante que a escritora costumava ir, no bairro do Méier, zona norte do Rio de Janeiro, citada também na matéria: Clarice Lispector teria sido uma bruxa?), a fim de que ela pudesse lhe revelar sobre o seu futuro. “Eu fui a uma cartomante que me falou sobre todos os tipos de coisas boas que estavam prestes a acontecer para mim, e no caminho para casa dentro do táxi eu pensei que seria muito engraçado se um táxi me atropelasse e eu morresse depois de ouvir todas essas coisas boas”, disse Clarice Lispector em entrevista.

No momento em que a escritora estava escrevendo o seu respectivo livro, o aclamado jornalista e escritor José Castello a encontrou na Avenida Copacabana, no Rio de Janeiro, olhando para uma vitrine. Castello descreveu o fato curioso que se sucedeu ao cumprimenta-la: “Foi preciso de tempo para ela se virar. Ela não se moveu no primeiro momento, mas depois que repetir novamente a saudação, ela se transformou lentamente, como se para ver de onde vinha algo de assustador, e disse ‘então é você’. Naquele momento, horrorizado, percebo que não há nada na vitrine, apenas manequins sem roupas. Mas, então, o meu horror tolo torna-se uma conclusão: Clarice tinha uma paixão para o vazio”.

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Capa da mais recente tradução de A Hora da Estrela (Hour of the Star), publicada pelo selo Penguin Classics.

A narrativa de A hora da estrela se move a partir de um conjunto de linhas gerais sobre o caráter e a cena, com momentos descartáveis ​​e declarações casuais que resumem e analisam, aforismos sobre a vida e a morte, o mistério do tempo e de Deus. Ela se move a partir de uma profunda consciência sobre a tragédia de estar vivo a um subsídio dissimulado para o fato de que a existência é uma comédia. A história se passa tanto em um Brasil que é quase demasiado real nos limites por ela estabelecidos na vida das personagens quanto num Brasil da mente e da imaginação. A obra fez grande pela maneira em que as palavras e imagens, as mudanças de tom e textura são implantadas por Lispector em seu canto do cisne misterioso.

Como o crítico francês Hélène Cixous escreveu: “A Hora da Estrela é um obra sobre a pobreza que não é pobre.” Exibe uma maneira de ser conhecedor e misterioso, tagarela e estranhamente refinado. A obra detém e diz muito. Faz julgamentos radicais e observações minuciosas. É uma meditação sobre dois tipos de impotência, cada um austero e distinto. O primeiro é a falta de poder do narrador, alguém que tem palavras à sua disposição, mas que sente que elas, em toda a sua incerteza e inconstância, vai dispor dele. Esse narrador, apresentado como Rodrigo S.M., não tem certeza se isso deve fazê-lo rir ou chorar, em vez disso ele permanece em um estado de medo com explosões estranhas de pura determinação. E depois há a impotência do personagem que ele imaginou, ou viu, ou permitiu que as palavras, em toda a sua fragilidade e insensatez, para conjurar. Mas há momentos em que o narrador se esquece de si mesmo, como Samuel Beckett, muitas vezes, faz e encontra algo muito interessante ou grotescamente engraçado ao ser incomodado no questionamento de seu papel na narrativa, em sua verdade ou ficção.

A Hora da Estrela tem uma beleza espectral, um senso de forma e conteúdo como se dançasse uma valsa lenta e hábil com o outro. Lispector, por outro lado, chegando ao final de sua vida, escreveu como se a sua própria existência estivesse começando, com um senso de necessidade de agitar e agitar a própria narrativa para ver onde ela poderia levá-la, deixando seus leitores perplexos e excitados.

 

*Texto traduzido e adaptado do original publicado pelo The Guardian.

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