A eterna dúvida da traição

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Nova edição da Revista Granta Brasil reúne contos, relatos e poesias de autores brasileiros e estrangeiros sobre o tema

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Traição é um assunto espinhoso e capaz de fazer dos mais calmos seres irascíveis, dominados pelo “monstro verde do ciúmes”, já tão conhecido pela descrição feita por William Shakespeare em Otelo. Os tempos mudam, as relações amorosas ficaram modernas e mais fluidas, os compromissos já não são tão rígidos, mas o fantasma continua a pairar sobre os amantes. A última edição da Revista Granta Brasil – 13 desafiou 15 autores a falar sobre o tema sob múltiplas nuances. São contos, poesias e relatos históricos que dissecam o amor, os conflitos e as dores dos traídos e dos que caem em tentação.

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Revista Granta Brasil (Alfaguara, 2015)

A edição brasileira da revista literária mostra logo na arte da capa que o assunto pode ser dolorido. Pequenos e delicados alfinetes formam a palavra traição como se avisassem que o conteúdo traz histórias capazes de oferecer ligeiras picadas de dor àqueles que sofreram com os sentimentos de rejeição ao descobrir que foram passados para trás. Ou ainda pode-se dizer que sugere, de forma alegórica, uma fileira de pessoas seguindo para o inevitável: será que todos nós um dia vamos trair?

Essa é a questão que perpassa todos os textos dessa edição. Seja por escolha ou não, pelo escape, ou uma traição que acontece dentro do ir e vir da cidade, como sugere o início do primeiro texto da edição, o poema da carioca Alice Sant’anna:

“um frio danado

ela te espera na rua e ninguém entende

por que não aceita a carona

por que vai ficar ali no frio

disse que vai ficar na rua e pronto

nada grave

não tem medo”

Entre os afazeres domésticos, como colocar a roupa para lavar, um casal de japoneses de uma relação sem sexo, decidem ter um filho, mas não querem fazê-lo por vias tradicionais. Procuram então uma clínica especializada em geração de crianças pela “reprodução limpa”, nas palavras de uma personagem da escritora japonesa Sayaka Murata, que explora as relações amorosas no texto a partir de um olhar distópico. No conto Um casamento limpo, a traição nada mais é do que algo institucionalizado, afinal, eles são uma família e não amantes. A estranheza provocada pelo conto se dá pela frieza das descrições da autora, que incomodam de um maneira aflitiva. A formalidade do casal, a banalidade da conversa diária, a ausência de paixão e interesse, o casamento por contrato e a amante que surge, de repente, cobrando uma atitude da esposa traída, apontam um futuro de insanidade para as relações amorosas. Para o leitor, fica o desconforto.

Será um simples e-mail o prenúncio de uma traição? Uma única palavra é o ponto de partida do conto Abingdon Square, do escritor egípcio André Anciman. Ao trocar mensagens com uma colega de profissão, o protagonista deste conto começa a procurar minuciosamente indícios de interesses amorosos por trás de cada frase, pontuação, ou até aquilo que não foi dito, apenas sugerido ou implícito. “Na mesma noite depois de nos encontrarmos, recebi um e-mail. Queridíssimo, era como começava. Não Querido. De repente, eu era o queridíssimo de alguém. Ninguém me chamava de queridíssimo há anos. Amei.” No decorrer do conto, Anciman constrói a dúvida e nos afoga de perguntas.

Na poesia Noite Única, o escritor paulista João Anzanello Carrascoza descreve uma traição que acontece em apenas um encontro, evocando memórias, os pequenos fatos, o vinho bebido pelos novos amantes, as palavras trocadas, os silêncios, cada detalhe, como neste trecho:

“Sem premeditação,

e porque o hotel dela era mais perto,

e porque ele, claro, queria acompanhá-la,

como se não fosse tão frágil

diante da inevitabilidade do acaso

quanto ela,

como se ele fosse um guardião

que a protegesse de todas as ameaças,

pelo menos até aquele quarto,

foi lá,

naquele quarto,

depois de terem se lido

durante a hora do jantar”

Ora com suavidade e delicadeza, ora de forma incômoda e cruel, os outros 11 textos dessa edição de Granta nos convidam a formas inusitadas de pensar a traição em tempos de fragilidade das relações afetivas.  Nos colocam no lugar daqueles que sucumbiram aos desejos ou à “dúvida de Betinho em relação a Capitu”, a polêmica de Machado de Assis em Dom Casmurro. Ele/ela traiu ou não?

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