Eu contra o sol e muito além dele

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Eu contra o sol e muito além dele

Eu contra o sol, livro do escritor Alex Tomé, é uma batalha de um personagem em busca de si mesmo

Alex Tomé/ Divulgação

Pela orelha do livro, vê-se que o autor, formado em Comunicação Social pela Universidade Federal de São Carlos e atual estudante de Direito, roteirizou curta-metragens bem-sucedidos. Isso induz o leitor a pensar que – neste primeiro romance – depararemos com excessivos diálogos ágeis, mas pouca exploração vocabular, devaneios, lirismo ou exposição psicológica dos personagens. Ledo engano. Em Eu contra o sol, Alex Tomé nos apresenta uma literatura livre dos cacoetes que poderiam advir de sua atividade como roteirista (dos curtas A cena perfeita e Recortes – sendo este inclusive premiado com um Kikito no festival de Gramado em 2006).

Aos 34 anos de idade, Alex lançou seu romance de estreia numa edição da Confraria do Vento em 2016, com orelha escrita por Paulo Scott, e não fez feio. Fruto de anos de trabalho intenso e disciplinado, tendo sofrido muitos cortes e reescrituras, Eu contra o sol é um livro audacioso. A ideia geral do romance surgiu em 2005, como uma narrativa centrada no caos contemporâneo. Após 2013 e as manifestações de rua que tomaram o Brasil em especial a partir de junho, a história tomou concretude ao abordar livre e ficcionalmente o complexo cenário político-social do período e suas profundas idiossincrasias.

Apesar da narração em terceira pessoa, tudo é mostrado pelos olhos do personagem Benício, para quem a poesia talvez valha mais que a vida, ou esta se resuma a aquela. Vê-se que a obra é recheada com poemas do personagem, que dá a tônica do ambiente apresentado. A parte mais propriamente romanesca (o que não é poema de Benício) também se revela impregnada de lirismo, sendo que alguns trechos parecem mesmo prosa poética. O autor não tem medo das palavras e ousa correr todos os riscos, incluindo metáforas e outras figuras de linguagem à profusão. Isso poderia resultar em trechos ininteligíveis ou dúbios. Mas Alex Tomé, quase sempre, consegue aliar suas abundantes figuras de linguagem à clareza textual. Isso não é tarefa simples, e – assim – chega a haver escorregadelas que deixam o leitor confuso acerca de alguns acontecimentos. Mas são pouquíssimas nesse livro de mais de quatrocentas páginas – em geral muito ricas no léxico e sintaxe.

Em alguns trechos o leitor pode sentir falta do uso de uma linguagem mais corriqueira, para dar maior verosimilhança a certas passagens. Por exemplo, na página 209 desta edição de 2016, a personagem Maria, uma prostituta comum, diz: “Há pessoas que têm um amor e muitos deuses, outras acreditam no monoteísmo e em muitos amores”. Será se uma mulher naquela condição falaria assim? Na mesma página, Benício pergunta se já contou sua história ao garçom e este responde com um advérbio inusitado: “Reiteradamente”. Não soaria mais natural que o garçom respondesse algo como “uma porrada de vezes”?

Eu contra o sol (Confraria do vento, 2016)

O fato é que o leitor não deve tentar enquadrar o livro em fórmulas prévias, mas sim embarcar na proposta autoral e perceber – ao fim – se a obra alcança beleza estética e verosimilhança interna, a qual não se confunde com uma identificação aos elementos do “mundo real”, extraliterário. Mesmo com essas ponderações, pode-se ainda pensar que umas pitadas de crueza e uma linguagem mais usual em certos momentos talvez tornassem o livro mais autêntico, estabelecendo pontes com as percepções de mundo do leitor. Talvez.

Alex Tomé não está sozinho em seu modo de caminhar. Tudo demonstra que suas escolhas na senda literária são deliberadas, são ousadias propositais. A quem estranhou a frase da prostituta Maria, vale lembrar um trecho da novela Morte em Veneza, do escritor alemão Thomas Mann (1875-1955) – trata-se da fala de um barbeiro criticando os cabelos grisalhos dum personagem e tentando convencê-lo a aceitar que sejam pintados:

Isso é devido a um pequeno descuido, a uma indiferença para coisas exteriores, que é compreensível em pessoas importantes mas não pode ser elogiada incondicionalmente e, na verdade, menos ainda porque justamente a essas pessoas não fica bem ter preconceitos em assuntos naturais ou artísticos. Se a austeridade de alguns, em relação à arte cosmética, logicamente também se estendesse a seus dentes, eles não provocariam pouco escândalo. Afinal, nós somos tão velhos quanto nosso espírito e nosso coração se sentirem, e cabelos grisalhos significam, em certas circunstâncias, uma mentira mais real que significaria a desprezada correção. No seu caso, meu senhor, tem-se direito à cor natural de seu cabelo; permita que lhe restitua simplesmente a sua?” (Morte em Veneza, edição da Abril Cultural, 1971, trad. Maria Deling)

Quem achou antinatural a frase da prostituta no romance de Tomé, o que diria da fala do barbeiro citada acima? E se trata do trecho de uma das mais importantes e respeitadas novelas da literatura alemã da primeira metade do século 20!

Realmente Alex Tomé, pelo menos nessa obra de estreia, afasta-se de uma literatura mais precisa, seca, objetiva, direta, que caracterizaria um Franz Kafka, Graciliano Ramos, Dalton Trevisan ou Oswaldo França Júnior. A turma a que Tomé se filia, ao que tudo indica, vai mais para o lado de Robert Musil, Clarice Lispector, Virginia Woolf, João Guimarães Rosa e o referido Thomas Mann. É um estilo mais exuberante, adjetivado, com malabarismos sintáticos e maior diversidade léxica.

Não cabe ao leitor querer forçar o escritor a se enquadrar num estilo pelo qual ele não optou, ou ver como defeitos determinadas características textuais que resultam conscientemente de concepções estéticas autorais. Assim, que se leia Alex Tomé sem buscar nele aquilo que não foi sua proposta. Dessa forma, poderemos mergulhar com muito proveito na psicologia complexa de Benício e seus dramas familiares hamletianos, curtir seus competentes poemas, navegar prazerosamente pelas frases inusuais que povoam o texto por toda parte.

Eu contra o sol é uma batalha de um personagem em busca de si mesmo, contra as hipocrisias sociais da alta burguesia, contra os valores que nos rodeiam por todos os lados como a luz do sol, pretensamente invencível. Impregnado de um ceticismo que impede qualquer tom panfletário ou sociologizante, o texto também incorpora doses de romantismo, mas nunca a ponto de torná-lo piegas. Luta pelo amor, pela autodeterminação, pela independência, pela arte. Benício vence? Nós vencemos?

Alex Tomé iniciou vigorosa e competentemente sua batalha no campo da literatura. Em Eu contra o sol ele combateu o bom combate. Que venham outras guerras, contra o sol e demais estrelas. E muito além delas.

 

Fonte

Som e Fúria na estreia de Alex Tomé na Literatura, de Márwio Câmara

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