Eu serviria teus lábios em uma baixela de prata

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Eu serviria teus lábios em uma baixela de prata
Marçal Aquino. Foto de Renato Parada.
A retirada de “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios” da lista de vestibular da UniRV e a democracia brasileira.
Marçal Aquino. Foto de Renato Parada.

Notícia

Transformando a juventude
Num Jesus crucificado.
(Sueli Costa / Paulo Cesar Pinheiro)
“A Universidade de Rio Verde, em Goiás, decidiu retirar o livro Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (Companhia das Letras), de Marçal Aquino, da lista de livros do seu vestibular após uma campanha de um deputado bolsonarista, Gustavo Gayer (PL-GO). Em entrevista ao colunista Chico Alves, do UOL, Marçal disse não estar surpreso com o posicionamento do deputado, mas sim com o da Universidade. “O que me choca é a comissão do vestibular e a universidade aceitarem essa tutela tão inapropriada e retirar o livro da lista do vestibular”, desabafou.
O caso foi noticiado em diversos veículos ao longo dos últimos dias, incluindo a Carta Capital, que também destacou o posicionamento da editora, apontando censura no caso. ‘O livro explora temas como amor, traição, violência e redenção. A escrita de Marçal Aquino é poética e evocativa, retratando com detalhes a atmosfera e a paisagem da região amazônica’, diz um trecho da nota da Companhia.”
(Publishnews – trecho. Texto integral disponível em https://mobile.publishnews.com.br/materias/2023/05/02/apanhadao-livro-de-marcal-aquino-e-retirado-de-lista-de-vestibular-editora-fala-em-censura?mc_cid=2831eec422&mc_eid=6bf85548de)

Um livro pornográfico?

Na letra da canção “Cordilheira“, com melodia de Sueli Costa, Paulo Cesar Pinheiro bem retratou o que a juventude que transitava ali pelos fins da década de 1970 e inícios da de 1980 vivia: a expectativa de altos voos de liberdade e de democracia que se anunciavam, contraposta à realidade de uma ditadura que ainda teimava em ungir autocraticamente seus preferidos na cadeira principal do Palácio do Planalto.

Algumas décadas antes, no discurso final do seu “O grande ditador“, Charles Chaplin colocou na boca de um suposto sósia de Hitler palavras que contrariavam as expectativas para aquele personagem  e rescendiam a humanitarismo e solidariedade.

Capa do livro

Este pequeno ensaio trata-se de uma provocação eivada de raiva legitimamente republicana: que ovo de serpente a sociedade brasileira vem chocando nos últimos anos, a ponto de nos fazer chegar ao cúmulo de aceitar que um livro literário tenha seu valor julgado por um ser tão desqualificado quanto o nobilíssimo deputado Gustavo Gayer (PL-GO)? Ele foi o autor da ação que acabou por retirar o livro de contos da Marçal Aquino, “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (Companhia das Letras), da lista de livros do vestibular da Universidade de Rio Verde, em Goiás. A alegação é que o livro (um volume de contos excepcional, com várias edições e traduções) era pornográfico.

“Por que pé de maconha, xoxota e pau estão fazendo parte de um livro, um conteúdo literário, para que seja feita uma prova para ingressar na faculdade?”, questionou o ilibadíssimo parlamentar goiano em uma de suas publicações contra a obra, publicada originalmente em 2005. 

Censura

Em seu perfil no Instagram, a Companhia das Letras alegou que “Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios foi retirado do vestibular da universidade privada de Goiás, com a justificativa de que a obra seria imprópria para os vestibulandos. O livro explora temas como amor, traição, violência e redenção. A escrita de Marçal Aquino é poética e evocativa, retratando com detalhes a atmosfera e a paisagem da região amazônica”. Em seguida, a editora declara seu apoio ao autor, vencedor do Prêmio Jabuti e com obras lançadas na Alemanha, Espanha, França, México, Portugal e Suíça.

Aqui caberia outra pergunta: onde está a passear a propalada autonomia universitária da igualmente nobilíssima instituição educacional citada nos parágrafos anteriores?

Cada um no seu galho, prezado deputado e magnífico reitor. A Cesar o que é de Cesar. 

Portanto, não toquem na literatura, produzida entre um e outro escombro de uma democracia com vocação de Sísifo, que vem sendo reconstruída a muito custo, apesar dos tartamudeios sub-Sapiens de alguns setores da nossa sociedade, que desejam que voltemos a uma espécie de Neolítico democrático. 

Sorte teríamos se ambos, deputado e reitor, agissem como o falso autocrata do filme de Chaplin e fizessem o que se espera de mamíferos pensantes em um Estado de Direito Democrático: um pedido formal e público de desculpas à sociedade e à comunidade acadêmica, seguida da reinserção do livro de Aquino na tal lista.

Entretanto, não temos esta sorte, pois ambos, deputado e reitor, são títeres de um mesmo ideário, enquadrado como pouco afeito aos ares democráticos. Por enquanto, o que nos resta é torcer para que a juventude que ora convive com os dois mamíferos supracitados não seja crucificada como foi aquela submetida a uma ditadura civil-militar (1964-1985) de quem ambos, deputado e reitor, aparentemente  são saudosos.

Em defesa da arte

Homo Literatus irmana-se com Marçal Aquino e com a Companhia das Letras neste momento de luto e de ressaca democrática por que a propalada pátria amada tem passado.

Vida longa a toda literatura e a toda forma de arte que façam as perguntas que mais incomodam e que, como bem disse Ferreira Gullar, existem porque a vida não basta.

Créditos HL

Esse texto é de João Peçanha. Ele teve revisão de Raphael Alves e edição de Nicole Ayres, editora assistente do Homo Literatus.

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João Peçanha é escritor e professor. Doutor em Estudos Literários pela UFF e mestre em literatura pela USP. Tem vários contos premiados em diversas revistas nacionais. Seu livro de contos “Cantata para dezesseis vozes e orquestra” ganhou o prêmio nacional da revista Cult (2003). Sua peça teatral “O pacote” ganhou o prêmio nacional de dramaturgia da Fundação Cultural da Bahia (2004). Publicações: “Dezamores” (coletânea de contos reunida pelo escritor João Silvério Trevisan, 2003); “O pacote” (peça, 2005); “Satie manda lembranças” (contos, 2007); “O último selo” (crítica literária, 2009). Os romances vieram na ordem: “Patagônia Babilônia”, “Os cadernos de Pietene” e "Ave do sertão", este último escrito a quatro mãos com Paula Caminatti. Seu romance mais recente, "Aquela estranha arte de flutuar" (2022), foi publicado pela Editora 106.

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