Faça Boa Arte de Neil Gaiman – (des)conselhos sinceros

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Gaiman passa a sensação de uma conversa com algum escritor admirado se escondendo atrás dos próprios erros ao invés de disparar regras sobre a escrita.

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“Jamais me imaginei oferecendo conselhos a formandos de uma instituição de ensino superior. Nunca me formei em nenhuma instituição do tipo. Nunca mesmo me inscrevi” confessa Neil Gaiman, na abertura de Faça Boa Arte. Mas aconteceu: ele realizou o discurso de formatura para a turma da University of the Arts, em 2012. De ‘discurso’ há apenas a nomenclatura usual; a transcrição das palavras de Gaiman, disponíveis neste livro, passa a sensação de uma conversa com algum escritor admirado se escondendo atrás dos próprios erros ao invés de disparar regras sobre a escrita.

O autor de Sandman conta ter feito, nos idos da era pré-internet, algo que hoje seria investigado de imediato: quando perguntado onde trabalhou, mentiu e disse ter material publicado em revistas para as quais não havia escrito de fato. Depois tratou de realmente ter algo publicado nas revistas mencionadas em tais mentiras, e argumentar ter se enganado quanto a cronologia dos serviços. Deste erro todos se salvam hoje. Deste.

Outro foi recusar um conselho recebido de Stephen King, durante o ápice de popularidade de Sandman, na década de 90. King viu as multidões, as filas de autógrafos e o movimento em torno da fantasiosa obra, e disse “isso é muito legal mesmo. Aproveite.” E Neil não aproveitou. O corpo estava junto ao calor do momento, mas a mente só escrevia, ou pensava nisso, tamanha a preocupação com o depois e se algum projeto desse errado.

Uma das melhores partes de Faça Boa Arte é quando Gaiman fala da vida de freelancer, realidade progressivamente comum em nosso Brasil.  Em conversas com possíveis parceiros, ele escrevia conforme solicitado, era pago por isso (ou não), e argumenta que o mundo está cada vez mais freelance. “1 – o trabalho delas é bom, 2- é fácil lidar com elas 3 – elas entregam o trabalho no prazo. E nem é necessário ter todas essas qualidades. Duas das três já está bom. As pessoas vão tolerar seu comportamento desagradável se seu trabalho for bom e você entregá-lo no prazo. Elas vão perdoar seu atraso se seu trabalho for bom e se gostarem de você. E você não precisa ser tão bom quanto os outros se cumprir os prazos e se for sempre um prazer falar com você”. Pode soar exagero, falta de organização com prazo ou serviço, mas acima de tudo é sincero.

É uma das razões para ler este livro. Neil Gaiman não parecia preocupado em ensinar os formandos o que fazer, mas sim em compartilhar suas experiências profissionais, no aprendizado a lidar com o sucesso e com o fracasso, e buscar em algum canto uma ideia e… apostar nela. “Certa vez escrevi Caroline errado em uma carta; inverti a posição do A e do O e pensei ‘Coraline parece um nome de verdade’”, ele conta, e vê o erro como bom sinal, de quem está fazendo coisas.

Faça-boa-arte-CapaCoisas cujos resultados podem ser lidos em O Oceano no Fim do Caminho, Deuses Americanos, Instruções, Coraline e outras obras, e fica a quem lê acreditar se o autor achou que alguma delas daria certo. Faça Boa Arte é uma leitura sincera e rápida, disposta em uma diagramação caprichada semelhante a uma folha de desenho com as cores e formas ainda em estágio larval, a espera de um fio condutor e, se necessário, ordem. E a cata de acertos onde podem ser vistos apenas erros.

 

Faça Boa Arte
Neil Gaiman
Intrínseca
2014

 

O discurso pode ser assistido (áudio em inglês) ou lido em português aqui.

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