Verdade ou ficção? Sobre o livro Brochadas: confissões sexuais de um jovem escritor, de Jacques Fux
“Tudo aqui é verdade, exceto o que não invento”, adverte o autor de Brochadas: confissões sexuais de um jovem escritor (2015), Jacques Fux, antes mesmo que o livro se inicie. Ele, assim, já sugere qual será o tema do seu livro: os (des)limites entre verdade e ficção.
Então, você se – ou me – pergunta: “Ué? Não é um livro sobre brochadas?”. Você, leitor(a), potencialmente já ouviu – ou disse, quem sabe – a frase um tanto folclórica “Isso nunca me aconteceu antes…” naquele impotente contexto. É uma prova de que essa pequena questão masculina tem relação íntima com o embate entre verdade e ficção; é praticamente um subtema desse imponente assunto. Daí que o primeiro capítulo do livro de Fux, em que ele é autor, narrador e personagem, traz a seguinte declaração:
Antes de tudo, tenho que fazer uma confissão: nunca brochei. (Nem eu nem o famigerado Ziraldo!) Nunquinha! Mas uma retificação, infelizmente, deve ser feita: eu nunca brochei comigo mesmo. […] Assim, diante de musas (nem sempre tão belas), exposto a cheiros (de que tanto temos lutado para nos livrar), alcoolizado, ansioso, alucinado, vendo neuroticamente minha mãe me censurando, idealizando um amor […] tenho muito orgulho em admitir que sim, já brochei. E foram tantas vezes… me lembro de todas!
O livro, portanto, já começa em mentira – “ou ocultação parcial da verdade”, se assim preferirmos, conforme o agente da brochada –, mas insinuando o tom sincero – que sela um pacto de confidências com o leitor – e irreverente do livro, pois em seguida, fala-se de todas as principais brochadas do autor – ou, ao menos, do personagem. Ainda faz divertida ref(v)erência ao cartunista Ziraldo – Ziraldo Alves Pinto; Alves por parte da mãe e o Pinto do pai, de que ele se orgulha em fazer jus –, que teria dado a mesma polêmica declaração em uma entrevista à revista Playboy, há alguns anos, de modo que a história sobre o talentoso autor “maluquinho” ficou bastante famosa.
Não menos interessantes são as páginas que precedem o início do livro, com dois pequenos textos intitulados “Tentativa de esgotamento das brochadas masculinas” e “Tentativa de esgotamento das brochadas femininas”, nos quais o leitor – e também a leitora! – certamente encontrará, entre os elencados, alguns motivos com que se identificar – e questionará outros tantos. Da mesma forma, também são curiosas as epígrafes que o autor traz ao livro logo na primeira página. Somos recebidos com inusitados – e muito bem selecionados – fragmentos de Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Bernardo Guimarães – autor do célebre A escrava Isaura e de uma série de poemas eróticos e satíricos, bem menos afamados – e Hilda Hilst. Para dar uma pequena amostra, reproduzo o fragmento de Hilda – a quem se deve dar razão: “Que bom que as pessoas têm língua e dedo”.
No livro, catalogado como romance, mas que parece mais uma seleção de pequenas crônicas sobre o mesmo personagem e suas ideias sobre a impotência, vemos desfilar uma série de mulheres com quem o autor teria se relacionado. O enredo básico é:
Jacques Fux, escritor e crítico literário de ascendência judaica, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura como autor estreante pelo livro Antiterapias (2013) e do Prêmio CAPES de Melhor Tese de Letras pela versão original (2010) do livro Literatura e matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o OULIPO (2011) e doutor em Literatura Comparada (UFMG) decide se lançar à escrita de sua segunda obra literária: um livro sobre experiências sexuais frustradas. Para realizá-lo, decide enviar e-mails perguntando às suas antigas amantes sobre esses episódios constrangedores. Cada capítulo se refere, então, à narrativa de um desses casos – Agnes (1998), Alice (2001), Carla (2010) etc. –, seguidos do e-mail supostamente enviado à moça e da resposta que teria recebido, além de pequenos textos que entremeiam os casos apresentando um histórico cultural das brochadas através da humanidade, abordando desde alusões bíblicas até grandes figuras políticas e literárias do mundo todo – que não cito nominalmente para não ofender e afastar possíveis leitores da obra –, com especial destaque para as reflexões sobre a sexualidade no universo judaico.
O perfil deste personagem, protagonista e autor de Brochadas, é real; as informações biográficas acima foram extraídas literal e justamente da orelha deste mesmo livro. Já a maneira como o livro foi composto é que transita entre o real e o ficcional; em determinados trechos, ele relata um acontecimento e declara: “assim invento” – o que, de acordo com o início do livro, significa que é verdade. A cada e-mail enviado para uma ex-amante, o discurso é mais ou menos o mesmo: o personagem faz recordações do caso que tiveram, diz – para as amantes mais antigas – que agora é escritor, conta sobre o livro que está produzindo, relata brevemente suas inquietações literárias e pede a opinião dela sobre o capítulo – anexado em PDF – e sobre a tal brochada em si. Essa estrutura poderia se tornar monótona, se o autor não diversificasse um pouco a fala para cada moça, trazendo sempre uma nova informação ou discussão para o(a) leitor(a) acerca do amor, das relações interpessoais, da literatura e, sobretudo, das brochadas.
As reações das moças, geralmente adversas, não raro hilárias e às vezes melancólicas, nos fazem realmente questionar se não é tudo invenção. Afinal, quem receberia uma resposta com momentos como:
Jacques,
Com que direito você escreve um capítulo sobre a nossa antiga relação […]? Você está maluco, Jacques? Está com alguma doença terminal? […] Nem o nome você mudou! Eu posso te processar! […] E agora me vem com essa, querendo saber se eu já brochei com você. Claro que sim, Jacques. Já comecei brochando. A nossa primeira vez foi horrível. […] Então publique o meu repúdio, Jacques. […] Vai lá transar com suas namoradas e pensar na sua “mamãe”.
Jacques seria capaz de trazer tudo isso a público? E se for tudo verdade, não seria interessante fazer parecer que pode não ser alterando pequenos detalhes aqui e ali? Sem conhecer a vida íntima do autor, é impossível chegar a uma conclusão – e a lição da literatura é justamente de que isso pouco interessa. Importa mais o jogo dúbio da dúvida e o aproveitamento do texto do que a certeza pragmática da biografia, que faria desmoronar, seja para a descoberta da verdade ou da ficcionalização, a impressão sempre instigante de quem pensa, a cada página: “será?”.
Para não ignorar as possibilidades, em última análise, considerando a hipótese da invenção literária absoluta: vale louvar a capacidade do autor em simular o discurso feminino e em criar tantos perfis diversos e tantas micro narrativas tão ricas, tão densas e convergentes na linha narrativa que segue os amores de Jacques Fux ao longo de mais de 15 anos; no caso da verdade absoluta dos fatos, ainda que levando em conta possíveis pequenas adaptações, devemos admirar a capacidade de transformar o cotidiano – que poderia ser o de qualquer um – em ficção genuinamente interessante, com uma escrita leve e rica, densa e divertida, e também a coragem de enfrentar tantos prováveis processos judiciais!
Em suma, fálico ou falacioso, Jacques Fux consegue produzir uma literatura que é bom entretenimento e ainda enriquece o leitor em termos de cultura e de experiência literária sobre “essa sensação dúbia [e universal] do desejo da conquista e do medo do fracasso” – o que, afinal, não é mole não.
P.S.: Quanto à questão da grafia de brochada – ou broxada?: a certa altura do livro, o autor fala sobre a origem da palavra, fazendo referência à “brocha” instrumento de pintura, relacionando-a à parte mole de um pincel, justamente aquela com que se pinta – ainda que “brocha” seja, segundo o dicionário Aurélio, um prego curto, que se crava em uma superfície. Ainda de acordo com o dicionário, encontramos “broxa”, grafado com “x”, com o referido significado de “pincel”, bem como “broxante” é o “aprendiz de pintor, encarregado de preparar as tintas, transportá-las e dar a primeira demão”, e “broxar” é “pincelar, pintar com broxa”, além de “perder a potência sexual”.
Para não excitar polêmicas, ressalto a riqueza plural de significados que a grafia supostamente equivocada com “ch” traz, já que alude também a “brochura”, método de encadernação de livros, referência indireta à literatura, portanto. Também preferi aqui manter a grafia, em homenagem e em respeito ao autor. Acrescento, por fim, estes versos gozados do escritor Reinaldo Moraes:
Com xis ou com ce-agá
brochou, tá broxado,
deixa pra lá.