Edição brasileira de Finn’s Hotel apresenta os primeiros passos inventivos de James Joyce para a construção de seu último romance em vida, o enigmático Finnegans Wake.
Marcado pela ousadia estética que extrapolou os limites da prosa literária, atingindo o seu grau máximo com a publicação de Ulysses (1922) e, posteriormente, Finnegans Wake (1939), James Joyce recebe novo tratamento refinado com a primeira edição brasileira de um manuscrito perdido, intitulado Finn’s Hotel.
Descoberto ainda nos anos 90, embora somente acessível ao público em 2013, com o término dos direitos da obra do escritor, reservados ao seu tataraneto Stephen Joyce, o livro exibe um conjunto de breves narrativas (ao todo, dez), trazendo resquícios de sua frutífera obra-prima odisseica e elementos semânticos dos quais seriam vistos em seu último romance publicado em vida, de modo menos hermético e mais acessível ao público. Embora tal acessibilidade, aqui citada, não isente os leitores de se sentirem tomados, em alguns momentos, por certo grau de desconforto ou estranhamento, durante o trajeto da leitura.
“Nossa, foi lindo demais que eu nem tenho palavra, aquela toda sensação. O mar, de delicado matiz adornado dos plenos encantos de natura, com suas ondículas comportadinhas (com todas aquelas horrorosas e grosseiras lá de Belfast e da região de Lagan Lough muitíssimo devidamente trancadas num cubículo) estava verdadeiramente lindo mesmo na hora média da noite e mais especialmente por ser ele definitivamente o homem certo no lugar certo e as condições meteorológicas não poderem ser melhores”. (Trecho de O primeiro beijo, tradução Caetano Galindo, Ed. Companhia das Letras, pág. 78)
Divertido, caótico e desconcertante, Finn’s Hotel nos insere numa Irlanda remota, elencada por seres humanos-bichos e heróis mitológicos que fazem parte do processo de construção cultural e civilizatório do país. Nele, é possível encontrar personagens que apareceriam em sua mais ousada e multilinguística obra, Finnegans Wake, como é o caso do protagonista Humphrey Chimpden Earwicker, em “Homem Comum Enfim” (título que também apareceria em um dos capítulos do romance); e de Anna Livia Plurabelle, com o esboço de sua magnífica carta, considerada um dos mais belos registros literários da língua inglesa.
Curiosamente, o título do livro, escolhido por Joyce, refere-se ao hotel onde sua companheira de toda uma vida, Nora Barnacle, trabalhara como camareira, quando ambos se conheceram em 16 de junho de 1904. A data desse encontro, que marca, sem dúvida, a biografia do escritor, foi a mesma pela qual o grande pai da prosa moderna usara para trabalhar em seu engenhoso e canônico Ulysses, onde todo desenrolar da trama se passa em um único dia. E, por conta da repercussão mundial do romance, acabara entrando para o calendário cultural irlandês, através do feriado de Bloomsday (único no mundo a homenagear um personagem literário). Durante a data, que se estendeu mundo afora, incluindo o Brasil, admiradores do escritor reúnem-se para comemorar, com diversas atividades culturais, a obra joyceana.
No prefácio de Homem Comum Enfim – Uma Introdução a James Joyce para o Leitor Comum, Anthony Burguess afirma: “A aparente dificuldade faz parte da grande anedota de Joyce; tudo o que é profundo é em geral expresso em sonoros termos de Dublin; os heróis de Joyce são homens humildes. Se alguma vez houve um grande escritor popular, Joyce foi este escritor”.
O amor não correspondido de Joyce
Além dos contos, o livro apresenta uma nova tradução in portuguese para Giacomo Joyce, poema em prosa escrito durante a estadia do escritor, ao lado de sua família, em Trieste, na Itália. Nessa época, James Joyce lecionara Línguas na Berlitz School.
Publicado de forma póstuma no final da década de 60 pelo seu maior biógrafo, Richard Ellmann (posterior à descoberta do manuscrito na biblioteca do escritor, pelo irmão Stanislaus Joyce, nos anos de 1950), Giacomo trata-se de uma declaração apaixonada do mestre pela sua aluna Amalia Popper. Paixão esta nunca admitida à própria, embora discretas tentativas de aproximação tenham sido feitas por parte de Joyce à jovem.
“Saio correndo da tabacaria e grito seu nome. Ela vira e se detém para ouvir minhas palavras embaralhadas de aulas e horas e aulas e horas: e lentamente se coram as pálidas faces com brasas de luzes opala. Nada, nugas, não temais!” (Trecho de Giacomo Joyce, tradução de Caetano Galindo, Ed. Companhia das Letras, pág. 137)
Na escritura despretensiosa de Joyce, caracterizada por um teor de exuberante profundeza lírica e luxuriante, vemos explicitamente um professor obcecado pela sua aluna, que é apresentada como dona de uma áurea gótica, sensível e perturbadora. Seus versos oscilam entre momentos de puro entusiasmo e frustração.
“Minha voz, morrendo nos ecos de suas palavras, morre como a voz cansada de sabedoria do Eterno que clama por Abraão pelas colinas que ecoam. Ela se recosta na parede travesseiro: traços odaliscos na luxuriosa obscuriosidade. Seus olhos beberam minhas ideias: e dentro da úmida e quente escuridão acolhedora e complacente de sua feminidade minha alma, que também se dissolvia, jorrou e correu e inundou uma semente líquida e abundante… Tome-a agora quem quiser!…” (Trecho de Giacomo Joyce, tradução Caetano Galindo, Ed. Companhia das Letras, pág. 149)
Quanto a reunir dois trabalhos distintos, dos quais ambos foram largados de mão pelo próprio escritor, o tradutor Caetano Galindo, em nota introdutória apresentada no livro, comenta: “Acredito de fato que, junto de Finn’s Hotel, este Giacomo apresente a qualquer leitor uma generosíssima porta de entrada para dois momentos distintos da carreira deste que pode ter sido o maior prosador da língua inglesa”.
A caprichada edição da Companhia das Letras acompanha mais duas notas, assinadas por Danis Rose e Seamus Deane, de suma importância para os leitores se inteirarem às sutilezas do projeto embrionário de Joyce. Além disso, belíssimas ilustrações de Casey Sorrow podem ser apreciadas no decorrer de suas páginas.
Ainda que Finn’s Hotel seja considerada uma “obra incompleta”, não podemos negar sua importância para com os estudos joyceanos, sobretudo no que se refere ao enigmático Finnegans Wake. Decerto, o manuscrito perdido de Joyce apenas reconfirma o talento de um escritor que, com sua irreverente ousadia na arte de narrar, mudou para sempre os rumos da literatura e vivificou a cidade de Dublin, para sempre, no centro do mundo.