Fitzgerald, um corte de cabelo e um confronto entre o “velho” e o “novo”
Em uma reunião de família, há uma semana, escutei uma garota anunciar: “Quero cortar meus cabelos em estilo ‘joãozinho’”. A reação de choque foi imediata – e cada membro da mesa tinha um argumento para contrariá-la. Era como se a sua feminilidade fosse despencar enleada em seus cachos, aos pés do cabeleireiro. Ela, por sua vez, variava entre resignar-se e ensejar coragem, provocar, feito Bernice do conto de Scott Fitzgerald, publicado originalmente na revista estadunidense Saturday Evening Post. Aproveitei para falar à garota sobre a edição recente da Lote 42, com formato original, um retangular 28 por 10 em papel pólen, linhas pretas a imitarem cabelos como marca-página, e com as ilustrações de Mika Takahashi e tradução e prefácio de Juliana Cunha. Seria interessante refletir-se em um espelho de cem anos atrás.
Escrito na década de 20, o conto de Fitzgerald é tecido em uma época de ouro dos Estados Unidos, entre as festas de salão, os negócios e o apelo ao novo, ao movimento, à dança, às imagens. É também o tempo das sufragistas, movimento de mulheres a reivindicarem o direito ao voto, e por isso é também o tempo da colisão entre o mundo caduco e as ampliações, os desafios, a juventude. Conhecedor da sociedade norte-americana como poucos, o autor de O Grande Gatsby se insere nesse meio de transformações e também de boas algazarras, com a boa suspeita de que o velho, em vez de entrar em combate com o novo frente a frente, poderia tomar outras formas e ingressar pelas portas dos fundos das mudanças, mantendo-se vivo e louvado, em estilo diferente.
Se a trama da garota Bernice pode ser uma oportunidade de enxergar em ficção os acontecimentos detalhados de um determinado grupo, em um determinado tempo e um espaço, também pode ultrapassar a leitura histórica e se tornar um emblema de coalização de valores de épocas. Por um lado, temos Bernice, adolescente de requintes, mas com marcas provincianas e sonhos de donzela, que é casar-se bem e viver confortavelmente nos laços estabelecidos, e, por outro, temos Marjorie, a prima mais cool, atenta às festas, aos prazeres, que namora vários rapazes. Em um primeiro cenário, fica óbvio quem representaria o “antigo” e quem representa o “novo”. Mas será tão fácil? O truque de Fitzgerald está em mostrar as facilidades, para logo enxergarmos e nos atentarmos às ambiguidades.
A tradutora, Juliana Cunha, no Posfácio atenta bem para o papel de Marjorie quanto àquilo que parece ser a novidade, mas carrega todo o ranço do passado e, no caso, seria a manutenção do agrado aos homens, da vinculação a um feminino dado e essencial, da popularidade por aparências. No conto, Marjorie não gosta da prima que veio passar uma temporada em sua casa, pois a considera quadrada, chata, incapaz de seduzir um rapaz para dançar, e assim a desafia a conseguir ser atraente. Bernice, que tanto queria a amizade de Marjorie, aceita a contenda e escuta dicas de postura e de como seduzir garotos em festas. Seria preciso ser mais ousada, para começar. Assim, combinam uma história: Bernice deve contar a cada parceiro de dança que, na próxima semana, cortará os cabelos, em sinal de rebeldia, e pedirá opiniões, mantendo toda uma conversa em cima do tema. Plano feito e refeito, e que ganha logo o sucesso nos bailes, mas de tão bem-sucedido, fará Marjorie zangar-se de novo com a prima, agora por inveja. Bernice não compreende: o que está em jogo, afinal? Ela terá que ir até o fim para saber e descobrir o que sua prima, tão moderna, sabe apenas pela metade.
Atravessar um período de conflitos de comportamentos não seria “dar com uma mão o que se retira com a outra”, e a juventude daquela sociedade que se anunciava não poderia ser apenas a festa que gasta seu carnaval até vir a quarta-feira de cinzas, a seriedade da ressaca, em forma de convenções novamente organizadas. Seria preciso mesmo cruzar o caminho, passar pela falta de aceitação, isto é, a falta real de aceitações, na solidão que é o enfrentamento e a descoberta. Bernice é a heroína improvável dessa jornada, mas é. Scott Fitzgerald parece apontá-la como possibilidade, ou como desassossego, em uma prosa de agilidade de mestre, com os cuidados de uma edição à altura de sua atualidade.