A formação de cada leitor começa pelo gosto ou opção de outra pessoa, no geral, de seus pais. Há exceções para tudo, é claro; há quem não tenha pais que se interessem por leitura, e há quem nem sequer tenha pais, mas um leitor costuma nascer desta forma: um outro que chega e coloca um livro em suas mãos, quando o leitor ainda é jovem, e diz: “Leia. Você vai adorar.” Assim começou minha formação. Meu pai guardava uma coleção antiguíssima do Sítio do Picapau Amarelo, e costumava ler volume atrás de volume para mim, em épocas em que eu ainda mal sabia escrever. Incutiu-me gosto por histórias, algo que a escola tentou desconstruir nos anos seguintes, demandando leituras cada vez mais chatas, que pouco me falavam. Exigiam-me Jorge Amado. Li talvez dez páginas do romance recomendado e fingi saber o resto quando elaborei minhas respostas na prova. Passei por sorte, mas as consequências foram um pouco além, e aquele período de leituras forçadas me deu um certo desprezo por (entre outros) Jorge Amado, coisa que perdura até hoje. Quantas vezes não quis sacudir professores e dizer: “Vocês estão matando leitores em potencial.” Mas sei que a culpa não é só dos professores; sei que certas coisas são exigência burocráticas que chegam de cima. Mas que fique claro: alguém querendo apresentar Jorge Amado para alunos de onze anos está sempre matando leitores em potencial.
(Embora surpresas agradáveis tenham existido. Até hoje guardo comigo uma cópia quase desfeita de um livro chamado Açúcar Amargo, de Luiz Puntel. Foi uma das minhas leituras escolares, e o guardo porque, apesar de não ser nenhuma obra-prima, apesar de alguns momentos de humor não-intencional, conseguiu cativar a eu-criança. Havia brigas, gente rolando em canaviais, pais cruéis, feminismo, um rapaz morrendo no dia de seu aniversário, clamor por mudanças sociais, protestos, ameaças de morte; tudo aquilo que eu queria, ainda que não soubesse nomear).
O segundo estágio da formação do leitor é um momento só dele (e também um momento um tanto mágico). Acontece quando o jovem leitor, por acidente ou por indicação, acaba tendo em mãos o livro que vai mudar sua vida drasticamente. Considere que o caminho possibilitava estradas para qualquer lado. Mas então “O Livro” chegou até o leitor e o fisgou de tal modo que não houve retorno, não houve como lutar, o leitor tornou-se oficialmente leitor. Eu não sei qual foi o seu livro. Eu nem mesmo sei se você já o encontrou. O meu livro não foi apenas um livro, mas uma série, os sete volumes de Harry Potter; eu estava na idade certa e na disposição certa para me entregar com qualquer suspensão de credibilidade a eles; e eles me tornaram não apenas uma leitora, mas Uma Leitora. Foi depois deles que a fome por livros se enraizou de tal forma dentro de mim que eu sabia que meu destino estava selado. Não importava o que eu pensasse ou almejasse antes; a partir daquele momento, o passado tornou-se pó, e eu queria apenas duas coisas: ler e escrever.
Sobre escrever: que fique para outro dia. Sobre ler: entra aí o terceiro estágio da formação do leitor, que é a procura, a longa busca para definir seu gosto. Porque J. K. Rowling escrevia fantasia, foram outras fantasias que busquei, e encontrei autores incríveis: Diana Wynne Jones, Neil Gaiman, Terry Pratchett. Enveredei pelas lendas antigas do Rei Arthur, pela mitologia celta, pelos contos de fadas. Apaixonei-me por Ray Bradbury não por causa de seus romances mais famosos, mas por uma coletânea assustadora e fantástica e melancólica, chamada O País de Outubro. Encontrei um lar na fantasia, mas não era suficiente, não para aplacar minha fome. Eu queria mais, sem saber o que era mais.
Estava com dezoito anos quando o primeiro Crepúsculo foi publicado. Perdi a febre. Não estava por perto quando ela aconteceu, ou talvez estivesse apenas espiando meu próprio umbigo, enquanto outras garotas clamavam por um Edward ou um Jacob (a saber: no meu universo, os dois acabam de mãos vazias). Perdi também o trem para a maioria dos fenômenos da literatura jovem. Só fui ler o primeiro Jogos Vorazes quando todos estavam falando a respeito. Li. Gostei. Não comprei e nem li os últimos dois volumes. A vida seguiu bem. Crepúsculo: só fui ler mais adulta, porque tinha um desgosto tão grande pela história que precisava saber se meus sentimentos eram fundados em algo ou se eu só estava sendo a mesma preconceituosa de sempre. Descobri que meus sentimentos eram bem fundados. Avancei até a metade do primeiro livro e depois fui dominada por uma vontade maligna de jogá-lo pela janela. Perdi também a moda que se seguiu, de literatura jovem, um autor tentando copiar o sucesso do outro. Parava para ler as sinopses e me batia a sensação de já ter lido aquela história outras duzentas vezes, só com o nome da protagonista e de seus interesses amorosos trocados. Foi quando entendi que eu não me dava bem com triângulos amorosos.
Mas retrocedo um pouco. É meu texto, e manipulo o tempo como quiser. Retorno para antes do fim da minha adolescência, quando estava em um sebo e me deparei com Jane Austen: uma cópia surrada e amarelada de Orgulho e Preconceito, que comprei por achar que era um daqueles livros que qualquer ser humano precisa ler (a ideia se mantém), e que devorei em questão de um dia. Nascia outra obsessão. Como pulei de Hogwarts para Longbourn, não sei, não sei se há algum sentido, mas acho que não há muito sentido nas coisas de que gostamos. Elas apenas são. Dentro do terceiro estágio de formação do leitor, existe essa bifurcação: saímos do caminho que antes estávamos, nossa zona de conforto da leitura, e passamos a explorar os outros gêneros. Foi o que me levou de Hogwarts para Longbourn, e de Longbourn para as pequenas cidades assombradas de Stephen King, e do Maine de Stephen King para para Jeffrey Eugenides, que acabou por me levar para o colo da Donna Tartt (com licença, Donna Tartt). Não existe uma lógica visível; a lógica será lógica apenas para o leitor, formando suas preferências.
Eu gosto de doces. De Skittles e de chocolates Mars e de Paçoquita cremosa. Eu gosto de milk-shakes. Detesto álcool, nunca bebo vinho. Meu pai me diz que tenho paladar de criança. E quando eu, de fato, era uma criança, ele me dizia que eventualmente eu me curaria daquilo, porque os adultos, com o tempo, desenvolvem um paladar mais sofisticado. Jamais aconteceu comigo (Skittles para sempre), mas acredito que seja assim com leitores: quando ainda somos leitores iniciantes, compramos as coisas por impulso, porque a capa parece legal, ou porque a premissa é muito parecida com a premissa d’O Livro, ou de outra leitura de que gostamos muito. Conforme crescemos como leitores, aprendemos a evitar essas ciladas. Aprendemos do que gostamos, quais gêneros são nossos preferidos, e mesmo dentro dos gêneros de que não gostamos, já encontramos pérolas. Nós nos tornamos ao mesmo tempo mais ecléticos e também mais severos quanto ao que queremos ler. Somos o pesadelo dos vendedores no momento em que pisamos na livraria. “Posso ajudá-la?” “Não, obrigada.” E já abrimos aquele sorriso patético, que implora por perdão, porque já sabemos o que queremos, já estávamos espiando a prateleira certa mesmo à distância. Sabemos quais são os livros que vamos ler. Sabemos que invariavelmente encontraremos uma surpresa, um novo autor favorito, mas também sabemos que existem os que nunca vamos ler, não importa o quanto nos recomendem.
Eu sofro de momentos de ansiedade: quando me deparo com o tamanho da minha wishlist e tento calcular o tempo de vida que me resta e a quantidade de livros que ainda quero ler. Sei que nunca vou conseguir, que a wishlist não terá fim. A cada livro que eu tirar dela, mais dez serão adicionados. Sei que no meio haverá glória e também decepção, mas nada posso fazer. Uma vez que se completa a formação do leitor, é esta sua sina: ler e ler, até o relógio parar.