Existe um problema insistente entre os leitores de Elena Ferrante: não é possível se cansar da sua narrativa quando diante do final de mais um livro
Quando terminei de ler L’amore molesto (Troubling love, em inglês), encontrei, por acaso, um livro infantil da autora. Enquanto tomava um café terminei a leitura e, como se fosse uma fonte infinita de emoções, Ferrante mais uma vez me comoveu. Percebi então que tinha terminado a leitura de tudo que tinha ao meu alcance da autoria dela até que, perplexa com a minha própria sorte, soube sobre Frantumaglia.
Com um título desses e sem saber que se tratava de um livro de não ficção, logo imaginei que a misteriosa escritora traria fragmentos, pedaços, retalhos de algo profundo que faria da leitura, mais uma vez, um exercício de desgaste emocional da melhor qualidade. É o momento em que sofrer é bom!
Quando comprei o meu exemplar (e, confesso, fiquei feliz porque ser um volume grande, grosso), comecei a me familiarizar com o conteúdo e fiquei absolutamente deslumbrada com a possibilidade de entender as motivações, ouvir as explicações, saber sobre as posições da autora em relação aos seus livros.
Talvez essa sede em buscar informações nas entrelinhas e o por trás das obras deva-se ao anonimato da autora. Ter a possibilidade de conhecer o que pensa, o que imaginou quando traçou Olga, por exemplo, de Dias de Abandono, passou a ser irresistível, mesmo que, concordando com ela, completamente dispensável.
Em poucos dias devorei Frantumaglia, exatamente como costumo fazer com qualquer obra de ficção da Ferrante.
Diante dos meus olhos, opiniões de alguém que não sabemos quem é, mas da qual podemos nos aproximar através das reflexões que ela proporciona e sugere no livro.
É arrebatador ler o que a misteriosa figura que escreveu tanta comoção desvenda sobre o próprio processo de escrita, sobre o papel do autor, do narrador, do leitor. O uso da linguagem muito identificável, o mergulho nas profundezas dos relacionamentos humanos, a mulher, sua força e fragilidade, a cultura do sul da Itália e as consequências dela.
Traduzido com indescritível competência por Ann Goldstein, que também traduziu irretocavelmente para o inglês toda a obra da autora, o livro se organiza em três partes cronológicas: Ensaios e entrevistas – 1991 a 2003; Pedaços e fragmentos – 2003 a 2007; Cartas – 2011 a 2016.
Claro, a obra não deixa de ser uma saída para leitores famintos por todo e qualquer material de e sobre Ferrante. O gordo volume é uma bela estratégia marqueteira de venda da marca que se tornou Ferrante. Mesmo assim e ainda assim, o livro tem preciosidades, insights e traz reflexões fascinantes sobre o processo de criação da autora anônima. Mesmo intuindo que o livro seja um produto para satisfazer fãs de Ferrante, o conteúdo é excelente. Para quem escreve é um volume bastante original e curioso: apesar de anônima, Ferrante está disposta a revelar motivações por trás da criação de seus personagens e expor suas opiniões sobre os mais diversos e polêmicos temas.
Um dos lados mais interessantes da compilação do volume é a disposição da autora para o bom humor com sacadas deliciosas e que pontuam muitas entrevistas e especialmente cartas.
Esse trecho da carta escrita por Ferrante à editora Sandra Ozzola ilustra bem esse lado:
“Cara Sandra,
[…] eu achei que tivesse sido clara com Sandro, mas escrevendo posso ser mais direta e evitar pausas, hesitações. Você me perguntou o que eu pretendo fazer para promover L’amore molesto. Eu não pretendo fazer absolutamente nada que envolva contato com audiência e leitores. O que eu tinha que ter feito eu já fiz: eu escrevi o livro. Eu entendo que isso possa causar problemas para a editora, mas se você imaginou que eu pudesse mudar de ideia, você se enganou. Uma vez escrito, o livro não precisa mais do seu autor. Se valer a pena ele vai encontrar seu público. Senão, paciência. Pense na tradição do presente de Befana. Crianças sentem-se felizes, brincam com os presentes ofertados e ninguém vê Befana. […]
Além disso, Sandra, não são essas viagens para promover um livro caríssimas? Eu serei a autora mais barata de toda a sua editora. Você não precisará nem me ver!” (Tradução do inglês por Nara Vidal)
O título Frantumaglia é do dialeto napolitano, cuja referência é explorada em todos os livros da autora. O dialeto, apesar de provocar reações instintivas, dramáticas e rejeitadas pelos personagens femininos, é também o reconhecimento da origem das relações mais complexas e repetidas na obra de Ferrante, a relação entre mãe e filha. Pautada por dificuldade, pena, drama, ciúmes e desprezo, o dialeto é o lar, mesmo que um lar de onde se quer fugir.
Um significado rápido para a palavra “frantumaglia” seria fragmentos, pedaços de pensamento e reflexões que martelam a cabeça e nem sempre de forma positiva. Ferrante, no entanto, tem uma explicação que maravilha, mesmo que cause certa melancolia. Numa entrevista para as jornalistas Giuliana Olivero e Camilla Valletti, a autora arrisca uma definição:
“Minha mãe me deu uma palavra em dialeto que ela usava para descrever sensações contraditórias que a consumiam. Ela dizia ter dentro dela fiapos e pedaços de sentimentos, uma frantumaglia. A frantumaglia a deprimia. Às vezes fazia com que esquecesse o forno ligado, fazia com que se sentisse tonta, com náusea e trazia uma gosto de metal na boca. É uma palavra indefinida, indefinível. Refere-se a uma confusão de coisas aglomeradas na sua mente, uma sujeira e o lixo de águas barrentas na sua cabeça. A frantumaglia provocava reações misteriosas. Ela acordava minha mãe no meio da noite, fazia com que falasse sozinha, queimasse a comida. A frantumaglia deixava minha mãe envergonhada, fazia com que chorasse. Desde pequena essa palavra ficou comigo quando eu queria descrever um ímpeto emocional que me fizesse chorar aparentemente sem razão. Eram as lágrimas de frantumaglia.
Hoje eu acredito que apesar da minha dificuldade em conceituar frantumaglia, a palavra significa uma paisagem inconstante, instável. Uma massa infinita de lixo e sujeira do ar ou do mar que aparece abruptamente e de forma feia para o seu eu.
É também a sensação da perda quando tinha-se a certeza de que tudo estava estável, ancorado. É a identificação da dolorosa mudança pela qual percorre nossa vida, nossa paisagem. É, claro, a Olga de Dias de Abandono.” (Tradução do inglês por Nara Vidal)
A tentativa de definir “frantumaglia” continua por algumas páginas. Mas foi inevitável eu me lembrar de uma amigo romano que me dizia achar a língua portuguesa tão sedutora que a palavra “pesadelo” fazia seu coração amolecer, tão lindo era o som, mesmo sabendo que se tratava de um íncubo. Não tão diferente a sensação que tenho em relação à “frantumaglia”. Uma palavra melancólica, ainda que sedutora.
Mas o mais instigante e precioso nesse livro é exatamente a falta de clareza entre ficção e realidade. Mesmo não sendo ficção, o leitor precisa se lembrar que Frantumaglia e suas entrevistas, cartas e ensaios saem de uma autora que não deixa de ser um personagem, uma ficção. Afinal, a quem importa a verdade, a real identidade quando o criador nos presenteia com arte? Se a verdadeira Ferrante viveu ou não em Nápoles é uma discussão tão patética quanto a polêmica em volta da verdadeira identidade de Shakespeare. É preciso, quem sabe, lembrar leitores que nós, autores, somos mentirosos. Que quando falamos amigos, às vezes queremos dizer amante, irmão, pai, filho, marido. Não deveria importar a veracidade da narrativa. O que seduz na escrita da Ferrante é, além da boa história e da complexidade de relações, a poética, o estilo e a sensação de liberdade que ela me provoca. Uma liberdade que quase ninguém conhece mais: a de criar sem precisar dar satisfações ou atribuir referências e créditos ao longo da narrativa.
A autora fala sobre esse ponto no livro. Ela chama a atenção para a liberdade que ela tem, como artista e escritora, de inventar o que bem entender. Claro, se plausível e convincente, deverá ter a narrativa certo reflexo de uma vivência geográfica, de relações mesmo que meramente intuitiva. Quem poderá fiscalizar? A arte pode muito mais que a vigilância e a prestação de contas.
A única certeza nessa história toda é a de que, para mim, Ferrante tem um valor literário grande. No final das contas, Frantumaglia também é um jogo. É o relato de Elena, se é que ela existe.
Referência
FERRANTE, Elena. Frantumaglia: A whiter’s journey. Trad. Ann Goldstein. Europa Editions, 2016.