A frustração do projeto de objetividade em “São Bernardo”

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São Bernardo, obra de Graciliano Ramos, atingiu seu sucesso crítico por meio do fracasso da lógica capitalista de Paulo Honório e do fracasso da ótica regionalista da geração de 1930, isto em nome da subjetividade e da amplitude de horizontes literários

graciliano ramos

O período conhecido como regionalismo de 30, na literatura brasileira, procurou retomar tendências realistas/naturalistas, priorizando a representação do país como um todo, de forma homogênea e ufanista. Com isso, corria-se o risco de supervalorizar o conteúdo em detrimento da forma. Alguns autores, porém, conseguem contornar esse movimento e, mesmo abordando temáticas regionais, construir narrativas ímpares, conforme aponta Flora Sussekind em Tal Brasil, qual romance. Um dos exemplos é Graciliano Ramos, que se destaca por sua linguagem seca como o clima dos locais que costumam servir de cenário a suas obras.

São Bernardo, de 1934, é considerado um de seus romances mais importantes. Por se tratar de relato memorialístico em primeira pessoa, a quebra na pretensa objetividade neonaturalista é evidente. O relato em primeira pessoa é inevitavelmente contaminado pelas impressões do narrador-personagem. Paulo Honório é uma personalidade dominadora, em torno da qual gravitam todos os outros personagens, que funcionam por similitude ou oposição a ele. O próprio desejo de construir uma narrativa precisa, que começa a ser planejada pela divisão de trabalho, mentalidade capitalista de produção, é frustrado pela interferência da subjetividade do personagem, em especial após se apaixonar por Madalena.

A unidade e a síntese da obra são construídas a partir do eixo central da trama, o “sentimento de propriedade” do protagonista (CANDIDO, 1992). Paulo Honório é um Midas nordestino, que transforma tudo em capital, ou um Fausto menor, tendo vendido a alma à propriedade, de acordo com Luiz Costa Lima em A reificação de Paulo Honório. O crítico aponta como o proprietário de São Bernardo coisifica a vida, os valores e as pessoas, terminando por reificar a si mesmo. Frequentemente, os números são expostos na narrativa, além da marcação obsessiva do tempo em momentos decisivos (LAFETÁ, 1996). Paulo Honório é um quantificador do mundo, um manipulador do tempo, oportunista, típico capitalista do meio rural brasileiro.

No entanto, essa reificação das relações, visando o lucro, é quebrada com o aparecimento de Madalena. Paulo quer se casar para ter herdeiros, porém se apaixona pela singela professora de ideias humanistas. Ela já introduz uma mudança de planos na vida do prático fazendeiro, que a princípio havia pensado em pedir a mão de Dona Marcela. Além disso, no plano estético do romance, muda também o estilo, que permite o uso de palavras de afeto, diminutivos e delicadezas para descrever a personagem, e do ritmo narrativo, até então acelerado, que enfoca em cenas cotidianas e diálogos ilustrativos a partir do casamento. O capítulo em que ela é apresentada é dividido em dois, o que pode simbolizar uma transição da multiplicação de bens para uma proposta de compartilhamento.

São Bernardo (Leon Hirszman, 1972)
Filme “São Bernardo” (Leon Hirszman, 1972)

A impossibilidade de dominar Madalena, moça instruída, generosa, sensível, gera os ciúmes em Paulo Honório, isto é, o sentimento de posse da mulher. Madalena não se submete a sua vontade, prefere optar pelo suicídio, destruindo os dois. Após a morte da mulher, tudo perde o sentido para o capitalista. Até o filho, que tanto desejou, fica abandonado aos cuidados do capanga Casimiro Lopes, pois o pai não consegue se apegar a ele. O rolo compressor, esmagador e conquistador, dá lugar ao dínamo emperrado, fracassado e sem função, análise de João Luiz Lafetá em O mundo à revelia. O que lhe resta é viver de lembranças, e tentar reconstruir simbolicamente o que ele mesmo destruiu, por meio de palavras. Da decadência de São Bernardo fazenda, surge São Bernardo livro de memórias.

Paulo Honório empresário se refaz em Paulo Honório escritor, num jogo de espelhos. O tema da violência, física, como a surra dada em Casimiro Lopes, e psicológica, como a sofrida por Madalena, envolve a trama. Essa violência, “voltada para fora […] constrói destruindo” e “voltada para dentro […] destrói construindo” (CANDIDO, 1992). Direcionada aos outros, gera São Bernardo fazenda, direcionada ao próprio narrador, gera o romance em questão. As mesmas mãos destrutivas do empresário tentam reconstruir sua humanidade, no processo artesanal da composição escrita (ABDALA JR, 2001).

No presente, a realidade é desoladora. Abandonado por todos, o mundo de Paulo Honório se encontra à revelia, fora de controle e sem sentido. É o tempo das lembranças, da subjetividade, do monólogo interior, encontro consigo mesmo. O pio da coruja traz à tona a lembrança de Madalena, as saudades, a culpa. Ainda assim, o personagem se sente incapaz de mudar. Faria tudo de novo. Sua alma rude não aprende. Mais uma vez, fracassa. Derrotado como proprietário capitalista, Paulo também não consegue encontrar uma solução ou conforto por meio da literatura. O livro termina sem esperança de modificação.

Na contracorrente do regionalismo de 30, São Bernardo parte de um homem fracassado, empreendedor de projetos fadados ao fracasso, simbolizando a própria derrota da tentativa de objetividade na literatura, estando aí mesmo sua grandeza. As descrições físicas, caras aos escritores regionalistas para mostrar a variedade das paisagens tropicais, são escassas no romance de Graciliano Ramos, pontuais e sem floreios. A linguagem é rude como o espírito do narrador, seca e ríspida, econômica em recursos, antiacademicista, adotando a variante brasileira da língua portuguesa, trabalhada sem artificialismos. O ritmo narrativo acompanha a evolução dos fatos, a princípio ágil, dinâmico, dando espaço progressivamente ao delírio, às reflexões, ao monólogo interior.

O romance, sem dúvida, dialoga com uma época e uma região do Brasil. Mostra a passagem das oligarquias rurais aos grandes empreendimentos capitalistas, do domínio de fazendeiros como Seu Ribeiro, que não resistem aos novos tempos, a Paulo Honório, que sabe melhor aproveitar as oportunidades de negócios. Não deixa de ser, em certo sentido, uma obra regionalista. A diferença é que não se resume a isso, não faz da representação do país seu mote. Investe na força de seus personagens e de sua narrativa. Imprime uma marca de qualidade artística notável. Obtém, assim, seu sucesso crítico através do fracasso: fracasso da lógica capitalista de Paulo Honório, fracasso da ótica regionalista da geração de 1930, em nome da vitória da subjetividade, da amplitude de horizontes numa obra literária.

 

Bibliografia:

ABDALA JR, Benjamin. O pio da coruja e as cercas de Paulo Honório. In: Mota, L.D. & Abdala Jr, B. (org.) Personae. Grandes personagens da literatura brasileira. São Paulo: Senac, 2001.

CANDIDO, Antônio. A revolução de 30 e a cultura. In: A educação pela pedra e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.

_____. Ficção e confissão. In: Ficção e confissão. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

COSTA LIMA, Luiz. A reificação de Paulo Honório. In: Por que literatura? Petrópolis: Vozes, 1969.

LAFETÁ, João Luiz. O mundo à revelia. In: RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 1996.

SUSSEKIND, Flora. A terra: do herdeiro ao proprietário burguês. In: Tal Brasil, qual romance. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.

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