A vida é feita de fúria e de som e elas não estão nem aí pra gente. O velho bardo William Shakespeare disse quase a mesma coisa em sua ilustre peça Macbeth, mas na ordem oposta: som e fúria. Qualquer coisa vinda dele tem um quê de poético e teatral em suas camadas, e às vezes não dá pra saber se devemos levar a sério as cenas vividas por seus personagens; benefício da ficção onde temos mais escolhas do que nos pedaços da nossa realidade, que a gente não gosta de ter que levar a sério e até desiste de entender.
Parte disso se vê no trânsito de Curitiba, onde a fúria vem antes do som. Os motoristas perdem a cabeça e vociferam suas bênçãos às mães dos outros assim que alguém os corta o caminho, pra ficar no caminho dos outros na esquina seguinte. O sinal vermelho indica pare e fica só nisso, é uma indicação atropelada por gente que parece ter saído da garagem a 60 por hora. Ou a fúria vem da falta de ação, quando há motoristas imitando tartarugas e trancando os demais velocistas justo naqueles minutos cruciais entre as cinco e seis da tarde.
Sabendo de um atalho, o motorista confiante lembra da ruela que lá na frente liga o centro com o bairro e resolve tudo. Ótimo, ganha tempo ali – só torcer pra ninguém mais ter a mesma ideia na mesma hora. É a pressa, o relógio do celular berrando enquanto o GPS do carro recalcula a rota pela quinta vez em três quadras, e dá-lhe corrida pra vencer o trânsito e chegar a tempo do compromisso. É o som do alívio de ter chegado, se livrado das ruas por um par de horas. Afinal é coisa com hora marcada, atrasos não são permitidos, é importante.
Claro que é importante, todo mundo é especial, único e tem um compromisso inadiável pra daqui cinco minutos. Ninguém quer se permitir o mínimo atraso mas a gente se ouve bufando a cada rua trancada, preso dentro do carro ou do ônibus e preso uma segunda vez por nem sempre ter alternativa. A gente separa um tempo e sai mais cedo de casa, engole o café, deixa pra continuar a conversa depois (até aquela sobre trabalho), consegue pegar o ônibus ou sair com o carro dez minutos antes e se vê trancado porque deu acidente, porque choveu e a pista virou sabão, porque aquele trecho encrenca de sempre entupiu de novo com água e lixo da chuva, porque, porque.
Daí a gente desabafa com um familiar ou o colega de setor e percebe como estamos na mesma. Curitiba foi só mais uma que ganhou mais carros do que ruas, e precisa de muito pouco pra trazer à tona o repertório de queixas, sejam quais forem seus alvos. Um colega que venha de outra cidade pode até disfarçar o mau humor cotidiano maldizendo a cidade natal, em gesto misto de falta de empatia com o som dos outros e competição mórbida pra saber qual é a cidade mais furiosa.
Enquanto a insatisfação e a impotência perante as ruas não passam, a gente se ocupa com uma das nossas incessantes tarefas, às vezes alivia e até ocupa. Não camufla nem substituí, mas dá chance a outros sons. Talvez o destino nem fosse tão importante, a urgência pudesse ter outro nome e o compromisso não era tão sério assim. Mero devaneio. Nossa época daria um palco fértil pro velho Shakespeare, que sabia dar ordem às narrativas cheias de som e fúria mesmo significando nada.