Gogol, Akutagawa, João do Rio, Luís F. Veríssimo e o espetáculo tragi-cômico dos narizes

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Quando um russo, um japonês e dois brasileiros falam sobre os seus e os nossos narizes, as suas e as nossas máscaras

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Milan Kundera, em A cortina, quando lembra das primeiras narrativas estruturadas de uma forma que viria a ser chamada romance, sobretudo, por meio do escritor inglês Henry Fielding afirma que o trivial, o cotidiano, o comum não eram considerados interessantes, nem figuravam nas estórias. No entanto, o que vemos no decorrer do tempo, a partir dos loopings da história da arte escrita, é que o simples, o trivial, o corriqueiro passam não só a ser explorados na literatura, quanto mesmo a demonstrar a relatividade do que se entende por “corriqueiro”, “simples” e “comum”. E do comum saem, muitas vezes, reflexões de acentuada importância.

Esse é o caso das estórias de Nicolai Vassiliévitch Gogol (1809-1852), Ryûnosuke Akutagawa (1892-1927), João do Rio (1881-1921) e Luís Fernando Veríssimo (1936-), nas quais um assunto o mais trivial possível (o nariz!) ganha a cena em elucubrações às vezes macabras, às vezes satíricas ou mesmo críticas dos costumes e, portanto, da vida social.

 

1. GOGOL

gogol (1)Com uma irreverência estupenda e uma crítica mordaz dirigida à sociedade russa tzarista, mesmo com todos os golpes dos velhos sensores de Petersburgo, a novela ucraniana O nariz, de Gogol, foi publicada em 1836 e retrata a história do Major Platon Kouzmitch Kovaliov, um funcionário russo bastante arrogante e cioso de suas “boas relações” sociais que vê, ao despertar certo dia e se olhar no espelho, que perdeu o nariz. No lugar onde antes residia o cujo, uma superfície lisa como uma panqueca, conferindo à fisionomia do garboso oficial um aspecto aterrorizante. Kovaliov enlouquece de pavor diante da ausência de seu nariz. Como fazer? Como se relacionar socialmente? Como cortejar as damas endinheiradas do império? Como sair de casa sem um nariz?

O começo da história por si só já une estranheza e comicidade. É que se inicia narrando o modo como Ivan Yakovlévitch, barbeiro do Major e de metade da cidade, acorda querendo comer pão, e ao fatiar o primeiro encontra dentro dele um nariz. A partir daí, começa uma via crucis terrível para tentar livrar-se do tal nariz sem ser visto, para não correr o risco de ser acusado de algum crime – porque, quem iria entender a aparição, assim do nada, de um nariz humano nas mãos de Yakovlévitch? E, afinal, quem em toda a gigantesca Rússia, daria atenção a um simples barbeiro que não frequentava os grandes salões, nem sabia falar francês?

Apenas na segunda parte é que o leitor descobre de quem é o tal nariz, quando ele (sim, o nariz ganha vida!) aparece desfilando pelas ruas russas como um oficial de classe maior. Gogol constrói sua narrativa com um nonsense que nos lembra muito a pena de Lewis Carroll nas fabulações de Alice no país das maravilhas. E é com o rosto envolto em um lenço que o Major Kovaliov sai às ruas para publicar nota na imprensa para que achem e devolvam seu nariz e acaba deparando-se justamente com ele (o nariz), em tamanho maior, todo falante, vestindo um fardamento de oficial superior, desfilando pelas ruas.

Diante do cômico, emergem reflexões a partir das falas da personagem principal, o Major Kovaliov, como podemos ver nesses trechos:

“Se fosse o caso de um braço ou de uma perna, seria no máximo um mal menor. Mas sem nariz um homem não é mais um homem”(2011: 24)

“Que situação pode ser pior do que a minha? Que pretende que eu venha a ser sem nariz? Onde irei parar, entregue a esta fatalidade?” (2011:41)

Por entre os risos e estranhamentos diante de situações bizarras que Gogol cria, repicam na mente do leitor, num velho ridendo castigat mores, esses mesmos questionamentos do Kovaliov: que é um homem sem o seu nariz? Que parte de nossa ‘pessoa’, isto é, de nossa máscara de atuação fica sem sentido sem um nariz? Que é, afinal, um nariz em importância?

Gogol conclui a história com um happy end, dando ao Major Kovaliov em certa manhã, após acordar, de novo o seu nariz e fazendo-o dançar um trépak de tanta alegria. Diz Marcelo Backes que Kafka, que era fã de Gogol, teria se inspirado em O nariz na construção de boa parte da sua novela A metamorfose, no entanto, certamente após esses sonos intranquilos, Kafka teria matado Kovaliov! Mas Gogol parecia querer ensinar com o riso.

 

2. AKUTAGAWA

akutagawaRyûnosuke Akutagawa, o grande contista japonês, famoso por seus textos reflexivos, irônicos e fantasiosos, escreveu Hana (o nariz) em 1916 e nele conta a tragicômica história de Zenchi Naigu, um sacerdote budista de mais de 50 anos que possui um nariz monumental de 16 longos centímetros. Desde sua juventude Naigu incomoda-se com o gigantesco nariz, mas não demonstra às pessoas para não despertar pena nelas. Tentara mil vezes encontrar no rosto dos outros um nariz tão grande quanto o seu, mas sem êxito. Soube até de um sacerdote chinês com orelhas enormes, mas em lugar nenhum, notícias de um nariz descomunal. E vivia com um humor soturno, tinha dificuldades até mesmo para comer com um nariz tão grande que ultrapassava o seu queixo.

As pessoas, contudo, estavam acostumadas a ver o seu nariz e a dissimular não vê-lo, enquanto ele via que elas viam e dissimulava que não via. No mais, achavam que ele tinha conseguido um patamar tão alto no templo em razão justamente de seu nariz mirabolante e que deveria ser feliz por não ter que se casar, já que mulher nenhuma aceitaria um marido com tamanho nariz. Mas Naigu prosseguia em sua vontade de encurtar o nariz:

“Pero no es de extrañar que, a pesar de estos lamentos, Naigu intentara en toda forma reducir el tamaño de su nariz. Hizo cuanto le fue dado hacer, desde beber una cocción de uñas de cuervo hasta frotar la nariz con orina de ratón. Pero nada. La nariz seguía colgando languidamente”.

É aí que certa feita, um de seus discípulos chega da China e lhe oferece um tratamento que aprendeu com um médico chinês para redução de narizes, o que o velho Naigu aceita. Após ser fortemente pisado, escaldado e submetido a outros métodos duvidosos, o nariz de Naigu encolhe e ele se sente imensamente feliz. No entanto, diante do povo com seu novo nariz curto, Naigu é objeto de chacota. Todos riem dele, ninguém consegue segurar o riso diante daquela estranheza: Naigu com um nariz curto. Nem mesmo os samurais respeitam sua autoridade de sacerdote, o que o deixa profundamente triste e confuso.

Certa manhã, após acordar-se e dirigir-se aos jardins do templo para aspirar o ar e sentir a natureza circundante, Naigu percebe que seu nariz voltou ao tamanho normal, e diante disso se sente imensamente feliz. Como diria o velhote deus ao diabo aspirante a dono de igreja, num dos célebres contos de Machado de Assis: É a insatisfação humana!

Diante do irônico conto do Akutagawa, poderíamos entrever as seguintes reflexões: o que é ser feliz? O que é de fato felicidade? O que somos nós? O que os outros fazem de nós quando nos definem? O que é ser normal? Qual a importância de nossa aparência e, consequentemente, de nosso nariz?

 

3. JOÃO DO RIO

oc-autobiografia6.jpgJoão do Rio, pseudônimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (ufa!), escreveu em 1910 o livro de contos Dentro da noite, onde figura, dentre outros contos fantásticos de matiz urbana, o conto O bebê de tarlatana rosa, em que emerge, como que das sombras, a história espantosa de um nariz, ou melhor, da ausência de um nariz.

O conto retrata a narração de Heitor de Alencar a seus amigos, da história por ele vivida num carnaval em que no meio da folia esbarrou numa pequena moça vestida de bebê e com uma tarlatana rosa cobrindo o rosto. Heitor se agrada da jovem dando-lhe um beliscão em sua bunda, mas não consegue nada com ela naquele dia. Segue-se a folia e ele a procura pela multidão em plena arruaça, mas não a encontra, até que no último dia do carnaval recebe um beliscão igual e quando vira se depara com o bebê de tarlatana rosa.

Ambos vão para um lugar relativamente deserto, se encostam numa parede qualquer e começam a se beijar ardentemente. Surge a vontade devastadora, pura libido, que emerge da festa pagã. E no vai e não vai, Heitor se sente incomodado com o nariz postiço, de papelão, que a bela moça usa por baixo da tarlatana. Pede que ela tire, mas ela se recusa. Após isso, em meio aos beijos, ele toma iniciativa e arranca o nariz postiço…

No lugar onde estava o nariz postiço, um buraco fétido e assombroso, típico das caveiras. Aquela monstruosidade era o bebê de tarlatana rosa.

“Sacudi-a com fúria, pu-la de pé num safanão que a devia ter desarticulado. Uma vontade de cuspir, de lançar apertava-me a glote, e vinha-me o imperioso desejo de esmurrar aquele nariz, de quebrar aqueles dentes, de matar aquele atroz reverso da luxúria… Mas um apito trilou. O guarda estava na esquina e olhava-nos, reparando naquela cena da semi-treva. Que fazer? Levar a caveira ao posto policial? Dizer a todo a mundo que a beijara? Não resisti. Afastei-me, apressei o passo e ao chegar ao largo inconscientemente deitei a correr como um louco para a casa, o queixo batendo, ardendo em febre”.

Diante da ausência do nariz, mas não de uma ausência preenchida por uma superfície lisa como em Gogol, mas de uma ausência cadavérica, monstruosa, sangrenta e típica das caveiras, o jovem Heitor desmorona todas as suas máscaras do costume, e se enoja, sente raiva, agride e é agredido.

Diante do estranho resta-nos o horror. Mas poderíamos nos questionar: não sentia o Heitor o mesmo tesão, a mesma vontade enorme de consumir, de engolir aquele mesmo bebê de tarlatana rosa antes de sabê-lo sem o nariz? Até que ponto algo nos é, de fato, estranho? Tudo isso não seria como a macarronada com a qual nos deliciamos num belo prato, mas que nos negamos a tragar se passada no liquidificador?

 

4. LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO

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Em 1994, Luís Fernando, o filho do aclamado Érico Veríssimo, publicou O nariz e outras crônicas, livro no qual, obviamente, encontra-se a crônica O nariz, que conta a história de um dentista respeitadíssimo, com reputação e vida familiar estáveis e consolidadas, detentor de clientes fiéis, que de repente resolve usar ininterruptamente um nariz postiço de borracha acompanhado de óculos de aros pretos, sobrancelhas e bigode postiços, de modo a se aparentar com o comediante norte-americano Groucho Marx. Ele senta-se à mesa, deita-se em sua cama, sai à rua e vai ao trabalho com o nariz postiço.

O que antes desperta apenas graça e risos, passa paulatinamente a ser considerado uma aberração, algo terrível, e, sobretudo, estranho.

Assim é que sua mulher e filha se sentem envergonhadas com ele e não querem sair de casa para não serem alvos de chacotas, seus clientes o abandonam por não confiarem mais na sanidade do dentista, seus funcionários abandonam o trabalho, e ele mesmo acaba no divã de um psiquiatra, que tenta de todas as formas  persuadi-lo de sua anormalidade, mas ele não se deixa vencer.

Sem família, sem clientes, sem funcionários e dinheiro, resolve mais do que nunca não tirar jamais o nariz porque “agora é uma questão de princípios”. E na mente do leitor repicam, ainda, novos questionamentos: Se o dentista era tão respeitado, por que julgá-lo incompetente só por causa de uma máscara nova e de um nariz postiço? Até que parte do homem não pode existir sem a sua máscara social?

 

5. ARREMATE

Tanto em Gogol quanto em Akutagawa ou João do Rio e Fernando Veríssimo, o tema do nariz tem matizes tragicômicos, mas sobretudo cômicos. Gogol e Akutagawa, por exemplo, narram histórias sobretudo engraçadas, embora haja no russo algo de nonsense, de surrealismo na escrita, enquanto em Akutagawa, uma ironia fina. João do Rio e Luís Fernando Veríssimo optam pela narrativa repleta de diálogos, embora o primeiro desenvolva uma história macabra, quase fantástica e o outro desenvolva reflexões constantes que aparecem num crescendo característico até a moral final, quase fabular.

Em qualquer dos casos repetem-se em nossa mente os questionamentos sobre o que de fato somos nós e o que de nós se perde se rompermos as regras costumeiras do convívio, ou melhor, que parte de nós mesmos morre com a queda das nossas máscaras? Poderíamos fazer como o Major Kovaliov e nos questionar: Que é um homem sem o seu nariz? Se a resposta for “nada”, temos mais uma prova de como somos, como diria Robert Walser, absolutamente nada.

 

REFERÊNCIAS:

AKUTAGAWA, Ryûnosuke. O nariz. Disponível em: http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/jap/akuta/la_nariz.htm.

BACKES, Marcelo. Comentários a KAFKA, Franz. A metamorfose; seguido de O veredicto, edição comentada. Tradução e notas: Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2013.

GOGOL, Nicolai. O nariz. Seguido de Diário de um louco. Porto Alegre: L&PM, 2011

KUNDERA, Milan. A cortina. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

RIO, João do. Dentro da noite. Disponível em: http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/dentro_da_noite.pdf.

VERÍSSIMO, Luís Fernando. O nariz e outras crônicas. São Paulo: Ática, 1994. Coleção para gostar de ler.

 

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